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Crônica da semana por Nilton Morselli

Bola pra frente

Todo mundo já conversou com gente que, para tudo, se apressa em dizer: “no meu tempo que era bom”. O papo pode ser sobre música, jeito de se vestir, de namorar, o comportamento das crianças, a honestidade dos políticos, o ensino. Enfim, são nostálgicos de tudo, que em pouca coisa ou em quase nada evoluíram.

Ao topar um desses pela frente, exercite a paciência. A despeito do mantra “antigamente que era bom”, o cara desfia um rosário de ideias preconceituosas, dessas que fazem as crianças repreenderem os adultos. Geralmente é daqueles que contam piadas que ridicularizam mulheres, negros e gays, e que só gente igual a ele ri.

É o tipo que diz ser frescura criminalizar uma anedota, porque na época dele não tinha problema nenhum zoar uma pessoa por algum motivo. O preto era o “Petróleo”, o que usava óculos era “Quatro Olhos”, tinha o “Manquinho”, o “Cabeçudo”, o “Zarolho”, o “Rolha de Poço”, o “Japonês”, o “Filé de Borboleta”, o “Pintor de Rodapé”, o “Alemão Batata, aquele que come queijo com barata”.

Agora, segundo a visão dos colocadores de apelido, a patrulha do politicamente correto tornou o mundo chato. Lamento informar que o mundo não ficou chato, os chatos eram eles. Além de chatos, demonstravam na escola uma educação aquém da ideal, invariavelmente repetindo um comportamento herdado de familiares e amigos.

O ciclo se rompeu, para o bem de todos. O bullying, outra coisa que os adeptos do “no meu tempo que era bom” negam a existência, pode deixar marcas profundas na personalidade e estar por atrás, inclusive, de casos de suicídio. Hoje, a prática é combatida no ambiente escolar em nome da boa convivência. Qualquer criança sabe disso.

Não perceber que o mundo mudou é o emblema dos que andam com a cabeça em um lugar que acabou faz tempo. Mas de forma alguma podemos generalizar. Conheço muita gente bem mais velha que eu que acompanhou a evolução dos costumes. Infelizmente, conheço gente jovem que não enxerga os avanços.

Nesse contexto, até alguns “retrocessos” podem ser considerados um passo para trás para poder dar dois para a frente. Por exemplo, antigamente o ensino não era para todos, e os que ficavam pelo caminho eram esquecidos pelo sistema, como o soldado mortalmente ferido numa guerra. Hoje, há inúmeras maneiras de reabilitá-los para que não abandonem os estudos.

Nem por isso as universidades de ponta deixaram de receber grandes cérebros – elas estão é deixando de receber investimentos na medida de que necessitam, mas aí é outro problema. Quanto menos analfabetos funcionais tivermos, menos chance de elegermos os mal-intencionados. Destruir a educação é uma forma de controle social.

Esse pessoal também é, invariavelmente, contra as cotas raciais e outras políticas afirmativas. O argumento – falacioso – é de que os negros não precisam delas para ingressar no ensino superior mantido pelo Estado, inegavelmente melhor que o privado. “Cadê a meritocracia?”, perguntam; “os direitos são iguais para todos!”, protestam.

Certamente, os direitos são iguais, assim como a capacidade individual não é dada pela cor da pele. Porém, as oportunidades não foram iguais – e ainda não são. Melhor seria se os “no meu tempo que era bom” estudassem um pouco a história dos negros no Brasil. Veriam que cento e poucos anos são insuficientes para reparar tamanha desumanidade que foi a escravidão. Pouco foi feito nesse sentido.

Com a cultura acontece coisa parecida. Antigamente, só fazia sucesso quem as gravadoras queriam – os bons e os ruins. A internet quebrou a hegemonia da indústria cultural ao democratizar o acesso à divulgação. Os artistas atuais, com talento ou não, chegam aos nossos olhos e ouvidos pelos meios digitais. Quem acha que toda a música de hoje é ruim precisa reeducar os seus algoritmos com urgência.

Não convém contrariar alguém que anda com a cabeça presa a atavismos, a cultuar ideias e conceitos que um dia até serviram, mas estão ultrapassados e hoje podem ser enquadrados como crime. Dificilmente você vai convencê-lo de que os costumes não nasceram com ele e que as gerações se sucedem em constante mudança. Além de ser impossível, retroagir ao “modus vivendi” de décadas passadas não causaria apenas constrangimento. Seria caso de camisa-de-força.

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