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Crônica da semana por Nilton Morselli

Janela para a rua

Moro numa casa em que a janela dá para a rua. Apesar de ter quintal no fundo, suficiente para morada de algumas árvores, a parede da sala foi construída junto à calçada. Há tantos anos ela está lá, símbolo de um tempo em que se podia janelar sem maiores riscos e com singelos prazeres cotidianos.

De lá se podia cumprimentar transeuntes apressados, bater papo com a vizinha no exercício de varrer as folhas caídas do pequeno arbusto, tomar uma brisa nas noites de calor ou simplesmente observar o movimento. Decerto, antigos moradores tinham por hábito deixá-la aberta para canalizar o vento e refrescar os cômodos, sem que isso representasse perigo.

Como a rua é de passagem para o Carnaval, quantos casais de namorados – em suas fantasias de pierrô e colombina, pirata e bailarina – não terão sido observados a partir da ampla visão oferecida! Jovens falando alto e fazendo algazarra no retorno da noite de diversão, aproveitando os últimos fiapos de madrugada, também desfilaram por ali. Deve ter servido também para o morador espiar brigas e verificar algum barulho estranho nos arredores sem ser notado.

“De janela, o mundo até parece o meu quintal / Viajar, no fundo, é ver que é igual / O drama que mora em cada um de nós / Descobrir no longe o que já estava em nossas mãos”, diz a canção “Janela para o mundo”, do grande Milton Nascimento, que acaba de se aposentar dos palcos. Janela para o mundo é a expressão de que mais gosto, porque é uma metáfora de múltiplos usos, assim como a palavra janela, que sozinha pode ter vários significados. O conceito foi parar até na informática, graças ao onipresente Windows.

Mas é o termo tomado na forma literal que me fez pensar sobre como o tempo se encarrega de mudar os costumes e as leis. A engenharia, o Código de Normais e Posturas e o gosto do freguês hoje têm outras disposições, todas com impacto nos projetos arquitetônicos. Nas residências, é preciso deixar recuos obrigatórios em relação à calçada, há meios mais modernos para o melhor aproveitamento do terreno e, sei lá, as pessoas não têm mais tempo para se debruçar na janela, pois debruçadas estão sobre o telefone celular.

Minha casa, remanescente de uma época singular, não é a única a ter um janelão indiscreto. Desde que me mudei para cá, há cinco anos, há um cadeado cuja chave encontra-se em lugar incerto e não sabido. Os tempos exigem grades. À falta de cortinas, vidros canelados impedem olhares curiosos, de dentro para fora e de fora para dentro. Nada me tira da cabeça a ideia de transferi-la para uma parede lateral, onde ela possa voltar a ter uma vida de janela, mesmo que nunca mais seja um elo para o mundo exterior.

Quero ali pelo menos um vaso de flores, um gato a dormir preguiçosamente na pingadeira ou simplesmente uma abertura para entrada de ar puro e um pouco de luz solar. Porque uma janela sem função é o mesmo que nada. No máximo, uma metáfora perdida.

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