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Crônica da semana por Nilton Morselli

As lendas urbanas estão acabando

A primeira fake news na vida de uma criança de antigamente, como eu, era o homem do saco ou sua variante: a carrocinha que passava pegando moleques desobedientes. Até certa idade, metia medo na gente. A sistematização do rapto era exagerada, mas também era verdade que de vez em quando uma criança desaparecia, o que faz a minha pouca inteligência concluir que o medo era das mães.
Não me lembro se esse homem malvado, que poupa as crianças comportadas, está nas “Histórias da Carochinha”, organizadas há um século por Figueiredo Pimentel. Creio que não. Mas certamente era um prato cheio para qualquer escritor infantil que quisesse desenvolver o tema. Hoje não mais, porque os psicólogos das editoras não aprovariam.
Ser criança nos anos 1980 realmente foi para os fortes. Volta e meia uma pessoa era apontada como sendo o lobisomem. Veja só a crueldade dos adultos, que adoravam a ver nossa cara de espanto e nem ligavam para a integridade do sujeito que supostamente virava lobo enquanto nós dormíamos. A mentira poderia sair do controle.
Lembro que um dia disseram que era um bêbado barbudo que andava pela rua e sempre passava perto da minha casa. Passei a conferir, a distância segura, se os cotovelos do rapaz tinham algum ferimento, se havia vestígio de sangue na barba ou fiapos da manta da criança atacada durante a noite. Olha o nível.
Para a nossa sorte, o homem-lobo nunca apareceu. Quem aparecia todos os dias era o “Governo”, de quem eu também tinha medo. Essa foi a molecada da escola que inventou. Não sei o que ele poderia fazer, além de ralhar com os que subiam no muro para simplesmente chamá-lo pelo apelido. Fomos todos proibidos pela diretora de xingar o “Governo”, talvez porque ainda estivéssemos sob o regime militar.
As escolas, por sinal, eram um celeiro de histórias do outro mundo. Assim como em todo o Brasil, em Taquaritinga não havia um banheiro escolar que não era assombrado por uma loira. Tratava-se do espírito de uma estudante que vivia matando aula entre os germes até que um dia foi encontrada sem vida, possivelmente vitimada por coliformes mortais importados da China. Deve ser por isso que as meninas iam sempre fazer xixi em dupla, costume que perdura na idade adulta.
Ainda na década perdida, uma lenda urbana tomou grande proporção quando até a Rádio Clube Imperial anunciou que o diabo apareceu na danceteria Hollywood. Os jovens teriam sentido cheiro de enxofre em torno de um sujeito que tinha rabo e chifre. Pânico geral. Até um padre Quevedo de festa junina poderia explicar que uns dias sem banho e uma namorada infiel poderiam produzir um fenômeno assim. Quanto ao rabo, seria efeito do pavor.
As lendas urbanas foram perdendo suas forças. A última – e já faz tempo – foi a do chupacabras. Todo bicho que aparecia com as vísceras expostas era colocado na conta desse ente, já transferido para o nosso combalido folclore. Digo combalido porque a racionalidade vigente quase acabou com o nosso folclore.
As lendas urbanas envolviam até figuras importantes. O cônego Lourenço Cavallini, que tanto fez e amou esta terra, foi umas vítimas. Sempre ouço algum desavisado comentar que ele rogou praga na cidade para que nunca se desenvolvesse, ou numa determina grávida. Justo ele que tinha apreço especial pelos infantes desprotegidos, tanto que fundou o Lar São João Bosco.
Mas há verdades sobre ele, por exemplo, a frase que roda até hoje: “Se peito de mulher fosse buzina, ninguém dormia em Taquaritinga”. O jornalista Augusto Nunes conta que Cavallini a introduzia nos sermões quando a pauta era de costumes. Mas foi o homem e ficou a lenda, com tudo o que disseram a seu respeito.
Aliás, o religioso ajudava a desfazer lendas urbanas, como aparições de Nossa Senhora em latas de alumínio e túmulos que vertiam água. Rapidamente, ele chegava com seu Fusca para pôr fim a qualquer possibilidade de mistificação, e se retirava mandando todo mundo ir trabalhar.
Com o passar dos anos, o encantamento popular foi acabando, certamente porque as crianças de hoje são muito mais protegidas do homem do saco e não precisam de ameaças sobrenaturais. Basta lhes dar um smartphone que elas não saem do quarto para nada. Epa! Com esse aparelhinho, as ameaças estão ficando cada vez mais reais.

Foto: Portal Radio Mix FM

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