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Crônica da semana por Nilton Morselli

Histórias de vida e morte

Numa semana em que o Rio de Janeiro ofereceu ao mundo uma notícia para lá de macabra, veio à mente um encontro com amigos em que lembrávamos como são variadas as conversas de velório. Bem, para esclarecer e registrar o que se passou na antiga capital do país: na terça-feira uma mulher foi ao banco levando um senhor para que ele assinasse a liberação de um empréstimo. O problema é que o homem, que ela chamava de tio Paulo, estava morto e, talvez exatamente por isso, não respondia aos apelos para que pegasse na caneta. O “x da questão” é a hora do óbito, que só a perícia policial irá relevar.

Velórios são um encontro forçado de pessoas que se veem de vez em quando, com a possível exceção dos familiares próximos. Nos mais concorridos, bastam duas pessoas trocarem meia dúzia palavras para que outras se juntem – percebe como todo mundo fica meio deslocado até encontrar um conhecido? Acaba virando uma rodinha, onde geralmente sai de tudo.

Tristeza mesmo só a dos parentes que privavam da intimidade do defunto, aos quais se prestam os pêsames. Amigos mais chegados podem – ou não – permanecer algumas horas para dar algum conforto à família. A maioria, porém, dá uma passada, já avisando que não pode ficar muito em razão dos compromissos, seja verdade ou não.

Mas quando as rodinhas se formam, a dissimulação é iminente. A conversa começa com comentários, geralmente elogiosos, sobre o personagem principal. Conclusões óbvias sobre a “Caetana” nunca faltam, mesmo porque, para morrer, basta estar vivo. Essa é uma observação ouvida em dez em cada dez velórios, assim como outra, que soa como sentença final: descansou.

Geralmente, alguém do grupo lembra um episódio engraçado envolvendo o defunto. É uma forma de enaltecer a personalidade de quem está partindo. Pronto! Atinge-se aí o clímax, em que o papo descamba para política, futebol, vida alheia e, claro, piadas. Elas são onipresentes, assim como aqueles que se esquecem de onde estão e soltam gargalhadas que podem ser ouvidas de longe.

Na sociedade pré-Covid, velava-se um corpo por 24 horas. Durante a pandemia, não havia velórios para evitar aglomerações. Na fase menos aguda, começaram a ser permitidas apenas duas horas. Agora, em que não há restrições, dificilmente eles chegam a oito horas. À noite, fecha-se a sala e todo mundo vai para casa, voltando na manhã seguinte para os últimos atos de despedida.

Outra coisa que acabou foram os discursos. Saíram definitivamente de moda. Hoje, no máximo, é o padre ou o pastor que de vez em quando ousa fazer breves comentários pessoais ao fim da reza, isso se sabe algo da biografia. Antigamente, havia os oradores oficiais da hora derradeira, sempre prontos a desfiar considerações honrosas.

Um tempinho atrás fui a um velório em que o religioso exagerou. Disse que o morto foi um homem exemplar, generoso, bom marido, ótimo pai, cidadão honrado… Olhei para a viúva e, seriamente, achei que ela fosse interromper o falatório para esclarecer: o senhor deve ter confundido as salas! A cara dela não deixava dúvida.

E teve um famoso orador do passado que saiu de Taquaritinga e foi render suas homenagens a um prefeito de Ribeirão Preto. Pediu a palavra, cumprimentou a família e começou: “Levanta-te! Ribeirão Preto precisa de você!” Batia na borda do caixão e ordenava: “Vamos, levanta-te! Ribeirão Preto precisa de você!”. Como o prefeito em questão não se chamava Lázaro, não levantou, para a tranquilidade geral. E o orador foi educadamente conduzido pelos braços para fora de sala.

E teve um bêbado em Taquaritinga que chegou a alguns metros do caixão, esticou o braço, arqueou um pouco a coluna, fechou um olho e mediu. Deu um passo para trás, mudou o ângulo e repetiu os gestos, chamando a atenção de todos. No fim, soltou sua conclusão: esse caixão tá fora do prumo! Segura que vai cair! Até quem chorava deu risada.

Para encerrar, uma história que Ruy Castro narra no livro “Ela é carioca”. Um defunto boa-praça ganhara dos amigos um velório com samba e chope. A família do velório ao lado decidiu pedir mais respeito para o único ser que estava quieto, de terno, com ar de sobriedade. Ele pediu desculpas ao irmão do morto e se ofereceu a acompanhar o rapaz até a sala. Quando chegou lá, ficou em silêncio por alguns segundos ao lado do caixão, suspirou e disse: esse defunto é um horroroso, o nosso é muito mais bonito! Quase tiveram de velar um terceiro corpo, tanto que ele apanhou.

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