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Crônica da semana por Nilton Morselli

A cidade era nossa

Se foi boa a minha juventude, me inquiria uma publicação atrás de curtidas e comentários. Ah, como foi bom ser jovem, com todas as exclamações possíveis. Acho que todos deviam ter sido um dia – nem imaginam o que perderam os que amadureceram antes da hora, por força das circunstâncias. A geração anterior teve de brigar pela liberdade, confiscada pela ditadura. Entregaram-nos um tempo sem igual.

Os anos 90 derramaram no mundo uma turma ainda meio ousada, meio metida à besta, talvez os últimos movidas à utopia. Queríamos mudar o mundo por meio da cultura, acreditávamos na força dos livros em detrimento das armas, desafiando o pontificado de John Lennon de que “o sonho acabou”.

Sabíamos de cor as músicas dos Titãs, aliás, toda a safra do pop-rock nacional daquela que foi erroneamente rotulada como a década perdida. Os rapazes e as meninas de hoje não fazem ideia de como era legal se reunir na casa do amigo que tinha toca-discos para ouvir o vinil do momento.

Ter me infiltrado na imprensa, escrevendo artigos como se fosse especialista em política internacional, dava a impressão de estar numa categoria acima. Só tínhamos certezas, dúvidas nem uma. Mas o oráculo sequer percebia que o trabalho precoce roubava uma parte dos sonhos possíveis. Era convidado para tudo, e se não fosse ia do mesmo jeito, porque repórter é guiado pela cara de pau.

Tivemos a sorte de ver o Cine São Pedro voltar a funcionar, graças a jovens um pouco menos jovens do que nós. Devolveram mais que um cinema, restituíram um sentido para a cidade. Lá era onde as coisas aconteciam. Todas as manifestações artísticas fervilhavam naquele ambiente mágico que cheirava a mofo.

Todo mundo se conhecia de verdade, sem ter rede social. E a maioria se relacionava bem. As mulheres eram bonitas com as curvas e os caracteres faciais que tinham. Beleza em série só se fosse de duas ou mais irmãs. A harmonização, hoje uma linha de montagem a ofertar rostos iguais e bocas inchadas, era feita de amor-próprio e aceitação.

O advento da Aids botou um freio no sexo livre que vinha como herança dos hippies, da revolução sexual dos anos 60 e 70. Tínhamos medo da infecção, e os cuidados aumentavam quando sabíamos que um conhecido estava partindo em decorrência da doença. Com as drogas foi a mesma coisa. Os que ficaram pelo caminho deram, com a própria vida, o exemplo de que não era por ali.

Nos sentíamos os verdadeiros donos da cidade, por causa da importância que nós mesmos nos dávamos. Mas isso era num sentido coletivo, não no individual como é hoje, com as tecnologias mais afastando que do juntando pessoas. A nossa força era resultado da união, embora hoje isso possa soar um tanto piegas.

Havia grupos de teatro ativos, várias bandas de garagem, exposições de arte, artistas (marginais e famosos) se apresentavam aqui, intelectuais de renome vinham para as semanas culturais, alguns bares alternativos. Vida que pulsava.

Adolescentes de agora jamais vão entender o que significa bater papo com um Fernando Gabeira na calçada do Cine São Pedro, depois de ouvi-lo palestrar. Ou entrevistar Christiane Torloni no pré-lançamento nacional de um filme seu. E, no mesmo local, visitar uma exposição de Tomie Ohtake, com a presença da própria artista plástica. Sem pedantismo, pra gente isso tudo era normal. Mas é o tipo de coisa que ficou no passado, dificilmente vai ocorrer de novo, porque um Guilherme Franco é um fenômeno muito pouco recorrente. O arquiteto foi uma espécie de embaixador da cultura. Uma pena ter morrido tão jovem, aos 42 anos.

Tampouco tínhamos noção de que testemunhávamos os últimos festivais de música. Mas tínhamos esperança nos olhos, o que é o principal na fase em que a vida desabrocha. Mas ninguém percebeu quando a coisa começou a dar errado, se foi numa segunda-feira ou num feriado de fim de semana. Só sabemos que tudo foi mudando e ao nos darmos conta já tínhamos boletos para pagar. Mas que foi bom enquanto durou, isso não dá para negar.

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