DESTAQUEMais recentes

Crônica da Semana por Nilton Morselli

O Fusca do seu Gervásio

Um carro pode ser muito mais que um carro. Isso acontece quando ele passa a fazer parte da nossa história, pelo tanto de tempo que nos levou de lá para cá. A indústria automobilística sabe disso. O vídeo de despedida do Fusca, quando a Volkswagen parou sua produção, é uma prova. Quem ainda não viu, corre para o Youtube, depois é claro, de ler essa história, que marca o fim da relação de um homem com sua máquina. No caso, um Fusca 1979.
Seu Gervásio Tramonti estava acompanhado do filho Iselo Tramonte quando foi buscar o possante, já com uns bons anos de uso. O branquinho estacionou na garagem do servidor público municipal aí por volta de 1990, sendo imediatamente incorporado à rotina da casa e recebendo as atenções e os cuidados dispensados a todos os recém-chegados. Quem já teve ou pilotou um sabe da valentia de um Fusca, o modelo mais emblemático do país, figurando em alta conta no coração dos brasileiros de várias gerações.
Não fazia muitos anos que seu Gervásio conseguira a tão sonhada carteira de habilitação. No começo dos anos 1980, após algumas reprovações na baliza, ele e o amigo Natal Galati descobriram que em Apucarana o processo era mais simples. Não pensaram duas vezes e rumaram para a cidade paranaense. Seu Natal já era um motorista experiente, ao contrário de seu Gervásio, que ainda não dirigia. Ele conta que o teste psicotécnico se resumia em fazer um desenho. Foi aí que a coisa pegou: Gervásio fez um coqueiro e o amigo optou por desenhar uma bananeira. O resultado foi surpreendente: Gervásio voltou da viagem devidamente habilitado e o que sabia dirigir foi reprovado! Talvez o avaliador gostasse mais de cocos do que de bananas. Dez anos depois, fez a renovação em Matão, porque a Ciretran de Taquaritinga não permitia a transferência de CNHs de outros estados.
Foi aí que o Fusca 1979 entrou na vida do homem que, por muitos anos, exerceu a honrada atividade de coveiro, profissional presente na derradeira hora de todos nós, em que carne e espírito seguem caminhos diferentes. Para garantir uma renda extra, era com outras carnes que seu Gervásio lidava. Providenciou um bagageiro para o automóvel e mandou fabricar uma enorme churrasqueira de tambor, toda articulada e desmontável, de modo a ser transportada para os locais onde era contratado para alimentar dezenas e até centenas de convidados.
Mas, como a vida não é só trabalho, seu Gervásio manteve por muito tempo, como diversão, um joguinho de truco. Sempre ia encontrar a turma na Fazenda Santo Anastácio, famosa também pelas partidas de futebol – era a casa do Cruzeiro, tradicional time amador de Taquaritinga. Um belo dia, na companhia do amigo Jamil Delarici, pegou a estrada de terra cuja entrada fica abaixo da antiga Comvelta. Ao perceber que o condutor não dava sinais de que acionaria o freio antes de atravessar a rodovia movimentada, o colega avisou, preocupado:
– Gervásio, vem vindo um caminhão na descida.
– Ele que breca!
Até hoje Jamil diz ter pesadelos com o vento e o barulho produzidos pelo caminhão passando a milímetros do Fusquinha.
Eu mesmo já fui um passageiro do valente Volkswagen. Em virtude da amizade com Leandro, neto de seu Gervásio, fui convidado para ir ao distrito de Jurupema numa noite de São João. Fomos os três. Na volta à cidade, depois de assistir à passagem na fogueira à meia-noite, percebemos que as famosas curvas da vicinal, por algumas vezes, estavam meio fora do nosso trajeto – e não havia acostamento, como não existe até hoje. Mas, como o condutor não era de acelerar muito, chegamos são e salvos às nossas respectivas casas.
Todo dono de Fusca é generoso, perceberam? Nunca negam um favor para um conhecido, principalmente quando o assunto é importante. Foi assim que seu Gervásio atendeu ao pedido de três mulheres para levá-las à residência de uma benzedeira que morava na zona rural, nas proximidades da Pedreira. Tudo ia bem até um banco de areia atravessar sorrateiramente o caminho do “Poisé”, fazendo-o tombar lateralmente.
Nenhum dos ocupantes conseguia sair, porque uma porta ficou virada para o chão e a outra, para o céu. Permaneceram na incômoda posição até passarem por lá algumas almas generosas, que destombaram o automóvel, que assim pôde seguir viagem como se nada tivesse acontecido. O incidente ocorreu na ida, antes portanto do benzimento, que certamente foi grande valia para todos. Depois disso, foram apenas dias de glória para o veículo e o proprietário.
Seu Gervásio dirigiu seu carrinho por mais de três décadas, até os 89 anos de idade. Quando completou 90, em 23 de novembro de 2021, decidiu que era hora de parar. Ele tem boa saúde física e uma memória de fazer inveja, mas percebeu que os reflexos já não eram os mesmos. Depois de ver o companheiro parado na garagem por vários dias, achou por bem cedê-lo aos filhos, que agradeceram, mas abriram mão porque já tinham veículos mais novos. Diante da impossibilidade de permanecer na família, o jeito era vendê-lo, tarefa entregue a Iselo.
No alto de seus respeitáveis 43 anos de aventuras, o bólido de linhas arredondadas seguirá sua história pelas ruas, não de Taquaritinga, mas de Igarapava, cidade a pouco mais de 200 km daqui. O feliz comprador é Gilmar Siqueira, amigo e irmão de fé do filho de seu Gervásio.
Nossas ligações com um carro vão muito além de seu valor intrínseco. O mais valioso está nas recordações que ele nos traz, dos momentos de alegria e dos caminhos percorridos. Engana-se quem acha que um carro não tem sentimento, ainda mais um Fusca. O ronco é o batimento cardíaco do motor, som que ecoará para sempre no coração de seu Gervásio.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *