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Crônica da semana por Nilton Morselli

A cidade somos nós

O que é a cidade senão o seu povo? Os prédios, as casas e até as árvores, sozinhos, nada representam. O povo é a alma de tudo. Todo mundo já deve ter visto na imprensa uma reportagem mostrando uma cidade quando a sua população vai embora. Ficam os imensos vazios, ruas sem vida, até os ratos se vão em busca de alimento. Detroit, símbolo do apogeu e do ocaso, é um exemplo. Ou a Fordlândia, uma tentativa urbana dos anos 1920 no coração da Amazônia, destinada a produzir látex para pneus. Ou ainda as baianas Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé, inundadas para a construção da Barragem de Sobradinho. Ruínas contam histórias, trazem lembranças. E só.

Parece óbvio, mas sempre é preciso lembrar que são as pessoas que fazem o movimento. Elas votam, são votadas, se reúnem em associações, se voluntariam. Estão sempre se estão encontrando, se apaixonando, se casando e formando novas famílias, criando outros problemas e novas soluções. Por mais erráticas que possam ser, as pessoas permanecem como a melhor invenção para preencher espaços, da igreja à praça, do teatro ao cabaré, do plenário ao estádio de futebol.

Como tiriricas, estamos em todos os lugares, às vezes ao mesmo tempo, graças à tecnologia. O homem e a mulher, da meninice à velhice, são os atores principais da cena urbana ou da paisagem rural. Daí a preocupação da arquitetura em projetar escala humana em tudo. É erro alargar a rua e estreitar a calçada; é falta de educação não parar para o pedestre passar.

Gostamos de aglomerar. Adoramos estar juntos nas comemorações, nas chegadas e nas despedidas. Quase nunca há unanimidade, e é bom que seja assim, pois a diversidade de ideias é que nos impulsiona. Assim, a engrenagem nunca para. Democracia e demografia têm a mesma raiz. Por isso, criticamos e elogiamos o prefeito, o vereador, o padre, o pastor, o que nasceu e o que morreu, a cor da pintura nova, a obra que foi concluída ou deixou de ser feita. Como diz a música, “o pop não poupa ninguém”.

Desse escrutínio diário e invariavelmente impiedoso atreveram-se a nos chamar de cidadãos, que em bom português significa moradores da cidade. Amplificando o conceito – porque sempre queremos mais –, cidadania passou a ser tudo aquilo de que um cidadão possa gozar em seus plenos direitos e deveres, não só participando da sociedade, mas também ajudando na sua construção.

Palacetes, automóveis, grandes construções, nada disso é importante ou deveria ser prioridade. São apenas coisas feitas para nos servir, e um dia virarão ruínas e sucata. O que importa são as pessoas, independentemente do que são e para o que vieram. Porque um dia elas também se vão e suas memórias ficarão no coração de alguém. É recomendável que todos entendam isso antes do anoitecer.

A cidade sem o povo não é nada, assim como uma festa em que os convidados não aparecem simplesmente não acontece. Com toda a razão, você vai dizer que é necessário algum advento, um fenômeno que provoque um grande êxodo para que uma localidade se esvazie. Falando em boa hora, nenhum evento extremo nos ameaça. Há apenas uma – por ora – leve preocupação com as baixas taxas de natalidade, que projetam uma faixa estreita dos economicamente ativos em pouquíssimos anos, em contraste com a crescente expectativa de vida. Mas dessa realidade não há como fugir, porque é o resultado dos tempos em que vivemos.

O conceito de Nação e Estado, para nós, é vaga e distante. Parecem entes intangíveis, cuja existência é relembrada mais ostensivamente a cada quatro anos. Porque vivemos é nas cidades, em meio a seus problemas e virtudes, e topamos com seus gestores na padaria ou ao dobrar uma esquina. Para muitos de nós, o mundo se restringe a seus limites territoriais, a urbe se confunde com a orbe. Por isso, ela precisa ser pensada para atender a todos, pelo menos coletivamente. Eis o desafio.

A cidade é mais que uma forma de organização social, é uma comunhão de vontades e esperanças a forjar suas vocações. Na ordem das coisas, ninguém é mais importante que ninguém. É a enfermeira, o pedreiro, o mecânico, o professor, o comerciante, o porteiro, o policial, o instalador, o engraxate, o juiz, o jornalista, o advogado, o coveiro… A cidade, legitimamente, somos todos nós.

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