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Crônica da Semana por Nilton Morselli

Direito ao esquecimento

Causou alguma surpresa – e muitas piadas – o fato de Elize Matsunaga estar trabalhando de motorista da Uber em Franca. Ela cumpriu pena por ter matado, esquartejado e ocultado o corpo do marido, dono da Yoki. Elize foi solta em 2022, após cumprir dez dos 19 anos a que fora condenada.

Suzane von Richthofen, que participou do assassinato dos pais, pegou 39 anos de cadeia em 2002. Foi beneficiada pela progressão de pena e desde janeiro está em liberdade condicional. Ela também se mudou para o interior paulista, precisamente para Angatuba.

São dois casos emblemáticos, que geraram comoção e repercussão nacional. A ampla cobertura da imprensa, como é normal, os tornou conhecidos. O mesmo ocorreu, por exemplo, com o casal Nardoni, condenado por matar a menina Isabela, jogada da janela de um prédio.

No Brasil não existe prisão perpétua ou pena interminável, mas vá convencer a opinião pública. Como opinião pública, nesse caso, entenda-se a forma como as pessoas acham que um condenado deva ser tratado pelo resto da sua vida miserável.

Em qualquer coisa que se diga em favor deles, é claro, vai embutido o risco de ser acusado de defender gente que nem seria gente. Não faltará quem diga: é porque não foi com a sua família. Não é disso que se trata aqui, mas de como um egresso do sistema penitenciário pode tocar o resto de seus dias com dignidade.

Pela lei de qualquer país civilizado, o cidadão deixa de dever à Justiça assim que a sua pena é declarada extinta. Ele tem o direito ao esquecimento, uma consequência da previsão constitucional do direito à vida privada, intimidade e honra.

Na esfera jurídica, é assunto para mais de metro. Discute-se até que ponto esses crimes podem ser tratados publicamente, ante o direito à liberdade de expressão e de imprensa. Há quem defenda até a exclusão das notícias dos meios eletrônicos, o que nada mudaria. Na época do Crime da Mala, em 1928, nem telefone as pessoas tinham, e todo mundo aqui já ouviu falar.

Mas como transformar a situação ideal em realidade? Casos históricos, como o do goleiro Bruno, do atirador do cinema e tantos outros serão lembrados por séculos. Os autores, que ganharam (má) fama repentina, dificilmente retomarão a normalidade de suas vidas, assim como suas vítimas – familiares incluídos.

O Brasil é um país extremamente cristão, mas os brasileiros nem tanto, a julgar pela inclemência da sociedade. Perdoar implica esquecimento total em qualquer religião. No entanto, vamos devagar. Se há alguém a quem cabe ou não perdoar é a família da vítima. Ao resto da sociedade bastaria conceder ao ex-devedor o benefício de ser deixado em paz.

Se Jesus propôs perdoar não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes, por que é tão difícil aceitar que um ex-presidiário tenha a oportunidade de refazer sua vida? Claro, isso depende do tipo de crime cometido. Um ex-traficante de drogas, na teoria, seria mais bem recebido que alguém que abusou sexualmente de uma criança e pegou cana por isso.

Se para essa gente arranjar emprego não é tarefa simples, o mesmo não vale para as coisas do coração. Basta reparar quantos candidatos e candidatas surgem para conquistar o amor de alguém que vive atrás das grades por ter cometido uma atrocidade midiática, de preferência passional. Eu mesmo conheci – e entrevistei junto com a Lívia Nunes – um homem que vivia com a terceira mulher, depois de ter matado as duas primeiras.

Saindo da seara dos autores e indo para a das vítimas, impossível não lembrar das mulheres que tiveram nudes espalhados na internet. Elas também clamam pelo direito de ter o caso e o crime – geralmente cometido por ex-parceiros – esquecidos, embora corram o risco de as fotos algum dia reaparecerem, muitas vezes em sites de serviços sexuais. É uma tristeza.

Para todos os casos e efeitos, o tempo é o melhor remédio, apesar de que eles desafiam o axioma segundo o qual o brasileiro tem memória curta. O que temos é uma memória curta deliberadamente seletiva. Experimente cometer um deslize para ver o quanto é demorado parar de te olharem com olhar de desprezo.

Do ponto de vista social, portanto, também é assunto para mais de metro. Então é melhor parar por aqui. Só para ficar claro: eu andaria numa boa no Uber da Elize. Porém, não pegaria carona com um serial killer, se conhecesse seu histórico.

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