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Crônica da Semana por Nilton Morselli

O jornalismo e suas lições

Minha mãe me acordar numa manhã de domingo não era uma coisa normal, porque fazia poucas horas que dormira. Os embalos do sábado à noite irrompiam as madrugadas nas diversões juvenis.
– Parece que desenterraram um corpo no cemitério – ela me disse sobre a notícia que correra rapidamente.
Em cinco minutos estava eu lá no local dos fatos, como repórter sempre atrás de notícia exclusiva. Cinco minutos não é força de expressão, pois o crime fora cometido a menos de duzentos metros da minha casa. Quando cheguei, a equipe da polícia já estava terminando o seu trabalho. Mantive uma distância respeitosa e já fui colhendo detalhes com o delegado.
Uma senhora de quase 90 anos havia sido enterrada no dia anterior. O autor do vilipêndio contra cadáver cometeu delito previsto no Código Penal. É algo que só pode ter saído de uma mente perturbada.
Não poderia faltar a entrevista de quem primeiro viu a cena e acionou a polícia, o coveiro. O corpo havia sido retirado por um buraco na tampa do caixão. Uma pedra pode ter sido usada para quebrar a fina camada de madeira. No corpo viam-se os arranhões vermelhos provocados pelo contato com as farpas.
Julguei terminada a apuração jornalística e agora haveria de esperar o resultado do trabalho dos investigadores. Agradeci, mas antes de me despedir, o coveiro pediu minha ajuda para colocar o corpo em um caixão plástico. Só restávamos nós dois.
Aceitei, sem hesitar. Ele pegou pelo tronco e eu pelas pernas. A ação não exigiu esforço algum: a mulher, franzina e de uma brancura quase incolor, pesava muito pouco. Carregamos o esquife provisório até o necrotério, onde o coveiro terminaria seu trabalho. Minha ajuda acabava ali.
Saí do cemitério pelo portão lateral pensando na crueldade daquele episódio cujo desfecho testemunhei. Alguns curiosos não puderam entrar. O acesso foi permitido apenas ao jovem repórter em virtude da profissão e do conhecimento que tinha com integrantes da Polícia Civil.
Ao longo da carreira, pude acompanhar muitos casos produzidos pela estranha natureza humana. Talvez esse, há mais de duas décadas, tenha sido o mais bizarro. Ainda bem que nunca mais o crime de vilipêndio voltou a ocorrer por aqui, e nossos mortos puderam descansar em paz.
O jornalismo me ensinou muitas lições, entre as quais manter o sangue frio em qualquer situação e não tirar conclusões precipitadas, por mais óbvia que uma coisa possa parecer. Também serviu para me livrar de todo tipo de preconceito.
Nenhuma lição é maior que esta: nada do que é humano me é estranho. Saber disso facilita muito a compreensão da vida e dos fatos cotidianos que a compõem. Essa consciência, porém, não anestesia os sentimentos mais sublimes, ao contrário, os potencializa.
A capacidade de se indignar com determinados acontecimentos é a mola propulsora da profissão. Aquele que não a tem seguiu a carreira errada. Deus não isentou homem algum do sentimento do medo, mas encaminhou os jornalistas por mais de uma vez à fila da coragem, ferramenta indispensável a quem está sempre à procura da verdade.

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