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Crônica da Semana por Nilton Morselli

Era eu

Acabo de fazer uma busca na tentativa de encontrar, entre milhões de imagens à disposição no mundo virtual, a gravura que me acompanhou durante os primeiros anos escolares. Vou descrevê-la: uma casinha velha de sítio, com alguns tijolos aparentes, um riacho ladeado de árvores, um cavalo, algumas galinhas e um menino.
O menino era eu. Nas composições que a professora mandava os alunos escreverem em sala de aula, assumir a identidade daquela figura feliz era uma forma de driblar a realidade. A força da primeira pessoa do singular tinha o condão de me transportar para um universo diferente do meu, de dias tão enfadonhos.
Para que a garotada exercitasse a escrita, a professora pendurava na lousa uma paisagem simples, que ela chamava de gravura, e nos desafiava a redigir um texto. Aquele desenho colorido, sempre o mesmo no avançar das séries, foi inspiração para vários textos. A criançada, com boa memória, reclamava: de novo!
Certamente era a única que o Estado mandara para a escola pública, não havia opção. Aquela ilustração retangular que remetia à diversão já estava gravada em nossas retinas. Mas a professora não era a mesma e nós também não erámos os mesmos. A cada ano íamos enxergando coisas diferentes no cenário e acrescentando detalhes à história.
A imaginação voava à medida que o amadurecer lhe dava asas. As composições infantis (“não esqueçam de deixar um parágrafo de dois dedos”, ela recomendava), só agora eu sei, revelava a evolução da nossa prosa, do vocabulário que absorvíamos. Mas duvido que os textos eram comparados para tal avaliação.
Por meio de uma simples redação, pela forma e pelo conteúdo, a mestra captava o essencial de seus pupilos: nossos medos, anseios, virtudes, pontos fracos e fortes, a sincronia com o tempo em que vivíamos ou deveríamos viver, o empenho ou a apatia diante do aprendizado. Estava tudo lá, às vezes escondido nas entrelinhas.
Para fazer uma descrição criativa, lembro que olhava fixamente para a figura e me imaginava passando um fim de semana na fazenda. Ainda não se falava em Second Life ou metaverso, plataformas virtuais que permitem, a adultos e crianças, criar uma vida paralela. A lousa – assim com os livros – era o mais avançado instrumento tecnoanalógico de que a escola dispunha para ensinar. Funcionava até quando faltava energia elétrica.
Nas minhas imersões por aquela imagem de contornos simples e cores primárias, pude mergulhar em rios profundos, em que nadava e pegava peixes com as mãos. Galopar céleres cavalos que alcançavam a velocidade da luz. Me embrenhar em matas repletas de animais silvestres. Alimentar porcos e galinhas. Tirar leite da vaca. Fazer tudo isso, até ser interrompido pela voz da avó chamando para comer o pão quente que ela acabara de tirar do forno de barro.
O fim de semana imaginário tinha a perfeição sonegada pela vida real, e a redação sempre terminava com a promessa de que no próximo estaria de volta para repetir a dose. Mas que a sorte a minha ignorar que as aventuras criadas pela mente não conheciam limites nem respeitavam fronteiras. A inocência não nos permitia saber que, naquelas viagens matinais, o que fazíamos já era literatura, a arte que nasce da inquietude. Uma pena não ter encontrado a mesma gravura na vastidão da internet – ela existirá, apenas e para sempre, na cabeça do menino.

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