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Crônica da semana por Nilton Morselli

O celular é a TV com agravante

Houve um tempo em que o chá dos estudiosos era defender teses que associavam televisão e violência. À onipresente caixa quadrada, com alguma razão, era atribuído um grande número de males que afligiam “à sociedade como um todo” – quando se usava a expressão “sociedade como um todo” é porque a coisa estava feia.

A TV fez jus à má fama. As nossas mães e avós adoravam novelas, embora fossem, para o moralismo vigente, o suprassumo da pouca-vergonha a acabar com o que havia de melhor na tradicional família brasileira. Contraditório, não? Assim como parecia um contrassenso ver aquele tanto de atores e atrizes famosos que despertavam paixões e ao mesmo tempo eram rotulados como mau exemplo por interpretarem histórias de traição e escândalos na sala de nossas casas.

Os evangélicos do meu tempo eram proibidos pelos pastores de ver televisão, sob pena de serem irremediavelmente remetidos, sem escalas, ao fogo do inferno. Já os padres exerciam uma supervisão menos determinista e mais condescendente. Como sou de família católica, cheguei a me questionar se era pecado passar algumas horas na frente do aparelho da sala.

Mas, como eu só via desenhos e jogos de futebol, acreditava contar com o perdão divino. No máximo, era um apático e passivo, adjetivos impingidos aos que não queriam outra vida. Em vez de brincar mais tempo na rua, ficávamos lá de olhos vidrados naquela tela que, segundo as ameaças maternas, reduzia drasticamente a acuidade visual. Além disso, estávamos condenados a ser perpetuamente alienados e dispersivos.

O padre José Felippe Netto, em um de seus artigos, asseverou que “obedecemos, passivamente, não a uma pessoa, mas a um aparelho, a um objeto, a uma máquina”. O querido sacerdote, que se pudesse excomungaria a TV, nos lembra que “ela chegou, instalou-se e está dominando, escravizando famílias inteiras, as quais já não se visitam. Não colocam cadeiras nas calçadas, não vão ao jardim, não assistem às retretas da banda”. Zezo estava registrando uma mudança de era, sem imaginar que no futuro teríamos uma Rede Vida, uma TV Aparecida.

Ignácio de Loyola Brandão, o grande escritor, em uma famosa crônica, também fulminou a “deusa dos raios azulados”, diante da qual uma família – representando todas – sofria um tipo de hipnose, imunizada que estava contra a própria vida. “Todos se ajeitam. O lugar principal é para o pai. Ninguém conversa. Não há o que falar. O pai não traz nada da rua, do dia-a-dia do escritório. Os filhos não perguntam, estão proibidos de interromper. A mulher mergulha na telenovela, no filme. Todos sabem que não virá visita. Se vier alguma, chegará antes da telenovela.”

A TV que conhecemos parece ter sido tudo isso. O sensacionalismo efervesceu, com emissoras nacionais abrindo sucursais no mundo-cão para cobrir os umbrais da notícia. O ápice da depravação, em busca de audiência com exibições dantescas, foi a década de 1990. A partir desse fundo de poço, depois de o Ministério Público entrar em cena, houve um acordo para elevar o nível da programação.

Mas eis que aí surge o celular, que primeiro foi usado apenas para fazer ligações telefônicas sem fio. A rápida evolução da tecnologia colocou o smartphone na mão de cada vivente, o que anos depois resultou numa espécie de televisão de alcance inimaginável e sem filtro algum. É um salve-se quem puder e, me parece, ninguém quer se salvar.

Tão numerosas quantos os antigos estudos sobre o impacto da TV na mente humana, as teses a respeito da nocividade dos telemóveis estão aí gritando alertas para a atual geração, ao ritmo daquelas notificações que aparecem na minitela. Se a televisão analógica apenas anunciava um produto, o meio digital permite que se compre o produto em dois ou três clics. Hoje vivemos no tubo, você (you) é o tubo.

Com a TV aberta, as fake news não representavam risco à vida. Agora, a disseminação de notícias falsas via aplicativo atrapalha até campanhas de vacinação. O excesso de tela coloca a perder a saúde mental, tanto dos mais velhos quanto da geração que nasceu junto ou depois desse invento magnífico e potencialmente perigoso, que neste momento, a propósito, está transformando minha voz em texto.

O smartphone e todas as suas possibilidades, incluindo as famigeradas redes sociais, não chegam a ser a absolvição da TV. Mas pelo menos não dava para levá-la para lá e para cá. Erámos zumbis somente dentro de casa, até o árbitro dar o apito final ou quando apareciam as cenas do próximo capítulo. Agora, os zumbis estão por toda parte.

Foto: Freepik

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