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Crônica da semana por Nilton Morselli

Pichar era uma transgressão juvenil

Sem fazer apologia da pichação, que é crime, o Brasil atual seria um prato cheio para os adeptos dessa prática, que era muito comum nos meus belos anos de juventude – e nem faz tanto tempo assim. Faltariam muros para tanta “troca de ideias”. Se bem que a aridez mental de extremistas afasta essa possibilidade, pelo menos com algum grau de civilidade.

Confesso que pichar foi uma das transgressões a que não me entreguei. Não por falta de vontade. Usar espaços alheios para se expressar era um ato revolucionário, que exigia uma dose de coragem, sem dar a mínima para a raiva que o dono da propriedade ia passar.

Foi exatamente por isso – o prejuízo alheio – que nunca comprei uma lata de spray para a finalidade marginal. A pessoa tinha de repintar a parede, mesmo com a perspectiva de vê-la grafada de novo nos dias seguintes. Nem sempre era tarefa fácil, pois para cobrir a frase era necessário raspar a tinta preta.

Foi o caso de um muro, no centro de Taquaritinga, onde um dia escreveram: “Aqui mora um feio”. Em poucas horas, as letras foram apagadas. O autor repetiu a ofensa. O morador ou outro pichador galhofeiro, nunca soube, decidiu retrucar: “Mas é rico”. No dia seguinte apareceu a conclusão: “Mas continua feio!”

Não havia tantas câmeras de segurança como hoje, daí que flagrar um pichador era quase impossível, até para a polícia. Não me lembro de alguém ter sido pego com a mão na lata, embora as escritas apócrifas estivessem por toda parte. Algumas eram engraçadas, como essa da casa do feio.

Uma delas nunca mais me saiu da cabeça, não só pela ironia como por estar próxima à Escola Francisco Silveira Coelho. Eu devia ter uns dez anos de idade quando li na parede lateral da Tipografia Central, a gráfica dos Bussadore, onde mais tarde eu trabalharia fabricando jornal e alinhavando as primeiras crônicas: “Estudo é a luz da vida. Economize energia elétrica.”

Quem teria saído de casa, na escuridão da madrugada, para escrever uma bobagem dessas? Certamente um estudante gaiato querendo fazer rir os passantes. Quem não gostou foi o saudoso Edevídio, que pagou algum profissional dos pincéis (provavelmente o seu amigo Zé Pimenta) para apagar.

Para ver como pichação é coisa antiga, em meados do século passado, quando as campanhas eleitorais para prefeito e vereador eram quentíssimas, os muros se tornavam palco de provocações políticas muito sérias. As alvas muralhas do estádio Antônio Storti que o digam.

Mas não era só agressão, mesmo que um dos significados do verbo pichar seja caluniar. Em meio a frases sem sentido, em arabescos de linguagem e primitivos desenhos eróticos, havia alguma filosofia. Por exemplo, a citação “onde não há lei, não há liberdade”, de John Locke, me marcou. Li-a por meses no muro do cemitério, até a Prefeitura removê-la.

Tinha aqueles e aquelas que usavam a pichação para fazer declarações de amor. Dava para saber a quem elas eram endereçadas, mas não a autoria, por razões óbvias. Houve uma exceção, que não vou dizer os nomes por discrição. As mensagens assinadas pela moça estavam em muitas edificações por aí.

Que ninguém confunda pichador com grafiteiro. O primeiro é transgressor e sua atividade polui o visual urbano. Já o artista do grafite embeleza a cidade e seu talento, colocado em prática à luz do dia, geralmente é remunerado.

A civilização avançou (em termos, em termos, ok?), os meios de vigilância também, e pichar caiu em desuso no interior. Hoje existem as redes sociais para as pessoas escreverem o que quiserem sem ter de gastar com sprays e o perigo de sair correndo da polícia. A diferença é que não dá para ser no anonimato. Pena que as redes viraram mais um muro de lamentações e sopapos verbais do que um lugar para trocar ideias, ainda que rarefeitas. Mesmo assim são mais recomendáveis que a casa dos outros.

Foto: Reprodução/Tumblr

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