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Crônica da semana por Nilton Morselli

O Lampião Paulista

“São Paulo não se contentou com um Lampião só. Criou dois. Eu sou o menor. O outro, célebre, foi Aníbal Vieira…” O “eu” da frase que você acaba de ler é Armelino Nunes da Silva, que ficou conhecido em Taquaritinga e outras paragens pela alcunha de Lino Catarino. A afirmação do homem cuja vida é cercada de lendas abre uma entrevista que veio à luz oitenta anos depois de ser concedida. Ela ocupa quatro páginas do livro “Submundo: cadernos de um penitenciário”, de Abdias Nascimento, um dos grandes intelectuais do último século, lançado em 2023 pela Editora Zahar. Os manuscritos de Abdias (Franca, 1914 – Rio de Janeiro, 2011) renderam uma obra histórica.

No início da leitura do capítulo intitulado “O Lampião Paulista”, Paulo Amêndola, voraz leitor e criador da Casa dos Livros (esquina da Prudente de Morais com Clineu Braga de Magalhães) chegou a pensar que fosse mera coincidência de nomes. Mas ao passar os olhos pelo seguinte trecho, não teve dúvida de que se tratava do personagem de quem ouvira falar desde criança: “Aos dezenove anos cometi o primeiro crime, de caráter grave. Felizmente não houve morte. Durante uma corrida de cavalos surgiu encrenca por causa de apostas. Fui agredido e agi em legítima defesa, como reconheceu mais tarde a Justiça. Até essa época vivi tranquilo como qualquer outro rapaz. Nasci na comarca de Taquaritinga e nessa cidade completei meus cinco anos de curso primário”.

Após um episódio de insubordinação durante o serviço militar, no começo da década de 1940 Abdias Nascimento acabou indo parar no Carandiru, o famoso presídio paulista, que mais tarde seria demolido como consequência da chacina de 111 presos. A pena de pouco mais de um ano também pode ser atribuída à perseguição que ele recebia durante a ditadura Vargas por sua atuação destacada no movimento negro. No cárcere, imaginou encontrar bestas-feras. No entanto, segundo ele, o que viu foram espectros de homens, muito diferentes daqueles pintados pela imprensa da época.

Essa também foi a impressão que o autor teve de Lino (o apelido deriva da origem da família paterna, Santa Catarina). Aqui em sua cidade natal, o que se especula sobre ele é de que era um sujeito perigoso, bandoleiro e ladrão de cavalos. Ao mesmo tempo, fala-se que era um homem bonito, por quem as moças se apaixonavam fácil. Daí os vários e supostos processos por “defloramento”, quando se pratica relação sexual com menor de idade mediante sedução. Os autos dessas ações não chegaram até os nossos dias, pelo que se tem notícia. O promotor de Justiça Flávio Nunes da Silva (1942-2018), que era primo em segundo grau de Lino, pretendia escrever uma biografia, mas as suas buscas por essa papelada nos arquivos forenses não tiveram sucesso.

Sem um material escrito, restou a lenda. Lino talvez tenha sido mais ou menos o que hoje se chama de “vida louca”: um sujeito que não fugia de briga e, digamos, tinha queda por bens alheios, sobretudo os que relinchavam, o que às vezes acarretava atos de violência física. “Me empolgavam as grandes distâncias, cavalgar pelas campinas na vida livre e sem peias dos vaqueiros”, relatou o rapaz, que aprendeu na infância o ofício de seleiro, logo abandonado para ir atrás de seus sonhos.

Na entrevista a Abdias, ele conta que só fora alvo de 16 ações judiciais porque ficou “visado” pela polícia: “Fui absolvido em treze, sofrendo nesse saco de processos três condenações: uma de um ano, outra de um ano e quarenta e cinco dias e a última de trinta anos! Não quero que me julgue um santo. Reconheço que fui rapaz sem juízo, mas nunca um bandido segundo a qualificação da imprensa e da polícia”. A pena máxima citada certamente é a do único homicídio que lhe pesou sobre as costas, crime que ele negou durante esse depoimento, dado na sala (na verdade, um porão) usada pelo grupo de teatro dirigido por Abdias no presídio.

Quando soube que o “Lampião Paulista” estava entre os detentos, o futuro ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista negro ficou preocupado. Mas os colegas o tranquilizaram dizendo que Lino era “um rapaz educado”. Acabou chamando o 7099 (seu número) para integrar a trupe. “Lino Catarino olhava-me nos olhos, com firmeza. É ainda moço. Trinta e poucos anos. Corpo esguio, flexível. Rosto fino. Respondia-me usando o menor número de palavras possível. Era como se eu lhe estivesse arrancando um pedaço de carne. Aliás, sua atitude foi sempre silenciosa no recinto do teatro. Enquanto outros cantaram ou dançavam ou conversavam em voz em alta, o 7099 permanecia quieto, como que em observação. Nunca o vi soltar uma risada larga e franca”, detalha o autor do livro.

Nesta, que deve ser a única entrevista que deu na vida, Lino afirmou que o boato de que era a versão bandeirante de Virgulino Ferreira da Silva, o rei do cangaço, o prejudicou. Ao responder sobre se acreditava na regeneração dos apenados, afirmou: “Acredito cegamente na regeneração do criminoso. Porque o homem nasceu para ser feliz. Para ser feliz precisa ser bom, e para ser bom precisa abandonar todos os maus pensamentos, exterminar do coração o ódio, o orgulho e as paixões. Ser humilde e paciente”.

Dr. Flávio Nunes, promotor tarimbado, dizia ironicamente que na cadeia não existem culpados. Todo criminoso que se preza jamais admite o crime. E como todos, o bandoleiro mais famoso de Taquaritinga aspirava à vida fora do cárcere e demonstrava apreço aos que permaneceram aqui: “Nunca me separei da minha família. Meu maior sofrimento é viver longe dos meus. Na qualidade de sentenciado, posso afirmar categoricamente que a liberdade é o maior bem que possuímos sobre a terra.”

Pouco se sabe sobre o personagem e seu fim, bem como se os malfeitos de Catarino foram realmente exagerados pela oralidade através dos tempos. O livro de Abdias Nascimento, um documento de valor inestimável, deu voz a bandidos famosos – o imigrante italiano Giuseppe Pistone, o autor do “crime da mala” (bairro da Luz, cidade de São Paulo, 1928), está entre os entrevistados. A obra tem 320 páginas e preço médio de 65 reais.

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