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Crônica da semana por Nilton Morselli

Uma onça na cidade

Era domingo, numa dessas tardes em que os todos ainda recobram as forças usadas na semana para gastá-las logo mais. Um fato nada corriqueiro interromperia aquela pacatez. Uma onça apareceu na cidade. Apesar de não ser uma onça-pintada, daquela com a tradicional pelagem que sempre vem à cabeça quando ouvimos a palavra, era uma onça-parda para ninguém botar defeito. De andar elegante, com aquele jogo de quadris típico dos felinos, corpo esguio e musculoso.

Quem deu o alarme foi uma senhora de meia idade que, ao abrir a porta dos fundos para levar uma roupa à lavadora, deu de cara com a bicha no quintal. O susto deve ter sido recíproco, pois a onça pulou o muro e foi passando pela vizinhança com extrema facilidade.

O morador de uma dessas casas contou que seu cachorrinho quase virou banquete, não fosse a perspicácia de se esconder em um vão, debaixo de um monte de telhas. Um outro, ao contrário, afirmou que seu pitbull de estimação afugentou o animal selvagem, que correu em direção ao córrego que corta a cidade.

Quando chegou à margem do ribeirão, com uma galinha na boca, a onça aboletou-se na forquilha de uma árvore. Ali terminou de saborear a penosa com tranquilidade, mas não reservadamente. Seus movimentos foram exibidos ao vivo por um rapaz que, de dentro do carro, fez uma “live” nas redes sociais.

As imagens foram vistas por centenas de pessoas e atraíram uma pequena multidão para o local. Todos queriam ver a visitante –era uma fêmea, se soube depois. Mas os bombeiros fizeram um cordão de isolamento, explicando o risco de se chegar perto da cena inusitada.

Se uma onça se estressa ou se assusta, pode pular de repente e atacar o primeiro que encontrar pela frente. Dentro dos limites de segurança só podiam ficar os profissionais envolvidos na captura. Estavam a postos a equipe de zoonoses, um veterinário voluntário, o prefeito, além dos bombeiros e uma moça que se apresentou como sendo da Sociedade Protetora dos Animais.

Um rapaz, ironicamente com bafo de onça e meio cambaleante, ofereceu seus serviços de encantador de serpentes. Como se tratava de onça, seus préstimos foram dispensados de pronto, uma vez que répteis e felinos provavelmente não se encantam com as mesmas coisas. É mais fácil se manter a distância segura do bote de uma cobra do que ganhar na corrida de uma onça, que alcança incríveis 80 km por hora.

O animal se comportou bem –às vezes pareceu até tirar um cochilo em alguns momentos– à espera da Polícia Ambiental. Demorou quase uma hora, tempo suficiente para a chegada de mais populares e, claro, jornalistas. Reportagem sobre animais sempre rende audiência, aprende-se na faculdade. O bichinho que deu cria no zoológico é ótimo para encerrar a edição da noite.

A repórter, vestida com uma calça de oncinha (coincidências não são raras na profissão), entrevistou todos, com a lógica exceção da protagonista da história, que ganhou closes especiais do cinegrafista. Os responsáveis pelo resgate só falaram depois da conclusão do caso. Youtubers também fizeram a transmissão em tempo real.

Enquanto isso, a repórter ia ouvindo a opinião do povo. A menina nos ombros do pai disse que achou legal, porque nunca tinha visto uma onça de verdade. O homem completou a fala da criança, cobrando das autoridades a implantação de um zoológico. “Onde vai o dinheiro dos nossos impostos?!”, reclamou. Os circos que se instalam também não podem, por lei, trazer elefantes, hipopótamos, macacos, tigres, leões, nada.

“É melhor não cutucar a onça com vara curta”, aconselhou um velhinho de chapéu. “Se fosse em outros tempos, esse bicho já era”, comentou um outro, fazendo gesto de arminha e exibido sua carteirinha de Caçador, Atirador e Colecionador, com a validade vencida. “Dá legítima defesa”, completou.

Ouviu-se um disparo. O dardo com tranquilizante fez a onça dormir em questão de segundos. Ela caiu sobre uma rede de proteção e foi colocada em uma jaula. Quando acordasse seria devolvida à natureza, em reserva florestal a poucos quilômetros dali.

A jornalista aproveitou para colher os últimos depoimentos e fechar a pauta. Ouviu platitudes como “é isso que dá queimar o habitat. Ela veio para a cidade porque não encontra alimento na mata”. Numa entrada ao vivo, um cidadão conhecido na sociedade por suas gozações encarou a câmera e falou com ar de seriedade: “Esse negócio de onça é coisa comum na cidade. Eu acordo ao lado de uma todo dia”.

A mulher dele fazia um pudim com a TV ligada, prometeu que naquele dia ele saberia o que significava “a hora da onça beber água”. Quando chegou em casa, o marido explicou: “Calma, meu bem. Você é uma onça porque é bonita, de andar elegante com aquele jogo de quadris típico dos felinos, tem o corpo esguio e musculoso”. Não colou. Ficou um mês de castigo.

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