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Crônica da semana por Nilton Morselli

Sons da madrugada

Não importa o tamanho da cidade, há sempre quem se incomode com algum barulho fora do normal. Moradores se mudaram de apartamentos que ficam ao lado do Minhocão, na capital paulista, logo depois que a obra foi inaugurada. Um quarteirão antes pacato vira um tormento quando um boteco de notívagos ou uma boate se instala.

O senso comum informa que 22h é o limite para uma festa caseira com som em altos decibéis, o que nem sempre condiz com a legislação ou a educação de quem a promove. A lei do silêncio é uma daquelas que o povo cita de cabeça em seus detalhes, sem saber ao certo se ela de fato existe. Quando existe, é letra morta no Código de Posturas.

A polícia é invariavelmente chamada para pôr fim aos bate-copos além do horário em que as pessoas costumam dormir. E não é raro que os homens da lei precisem ir duas ou mais vezes para pedir que se diminua o som. A inviolabilidade do domicílio é entrave para que se vá confiscar o aparelho e as caixas acústicas.

Ultimamente, muita gente tem usado as redes sociais para reclamar das festas promovidas pelos estudantes universitários que escolhem a cidade para sediar seus jogos. Depois do esporte, vira-se a noite nessas baladas etílicas em que se castigam os ouvidos com o melhor do funk.

Sorte minha não morar perto desses locais. Mesmo assim, às vezes dá para ouvir uns ruídos de longe, dependendo da direção dos ventos. Mas durmo um sono tranquilo, com pena de quem tem a obrigação de acordar cedo para trabalhar. É uma reclamação justa.

Mas há quem se incomode com sons menos perturbadores, como latidos, miados e, claro, o cantar dos galos. Essas aves até se tornaram símbolo de despertador, em virtude da mania instintiva de soltarem a voz antes do raiar do dia. Particularmente, adoro o grito canoro, que posso ouvir na vizinhança, de madrugada, e a qualquer hora do dia, da minha sala de trabalho – no quintal ao lado há um espécime com sério desajuste no relógio biológico.

Há quem reclame dos sinos das igrejas, outro som que me agrada. Sou privilegiado. De onde moro, posso ouvir dois, a marcar as horas e as meias horas: o do Santuário de Nossa Senhora Aparecida e o da Matriz de São Sebastião. Eles soam com diferença de alguns segundos, primeiro o da padroeira do Brasil e o depois o do padroeiro de Taquaritinga.

Mas nem todo mundo gosta. É famosa a história de um juiz de Direito que, transferido para cá, alojou-se gratuitamente na casa oferecida pela Prefeitura. Ainda hoje esse imóvel, que fica nas costas da Matriz, pertence ao patrimônio municipal, mas agora abriga departamentos. Já nos primeiros dias o meritíssimo encrencou com o badalar durante as madrugadas.

Como tinha o poder da caneta, determinou à paróquia que cessasse imediatamente o acionamento do sino, de modo a não atrapalhar o sono de vossa excelência. O imbróglio terminou logo, com a promoção do homem para uma Comarca de entrância superior, onde poderia continuar calando outros sinos madrugadeiros. Não foi preciso solicitar um “habeas sinus”, porque a medida, que não soava bem, acabou revogada.

Já morei a cem metros da Matriz e as batidas cadenciadas nunca me incomodaram, mas essa proximidade me rendeu uma história meio maluca. Certa vez, fui acordado às 5h da manhã por uma música que invadia meu quarto. Já nos primeiros acordes, identifiquei a melodia triste do “Toque do Silêncio”, vinda diretamente dos alto-falantes instalados na torre. Assustado e sonolento, concluí: o padre morreu. Ele estava velhinho e adoentado. Rapidamente vesti a roupa de trabalho e rumei para a igreja em busca de mais informações.

Abordei uma senhora, com um véu sobre a cabeça, que subia a escadaria:

– Que hora que chega o corpo?

– Corpo de quem, meu filho?

– Ué, do padre?

– O padre morreu!!! – suspirou a velhinha, assim mesmo com três pontos de exclamação, já com cara de choro e ameaçando um desmaio.

Percebi que, sem querer, eu estava armando uma confusão de dimensões paroquiais. Tentei amenizar:

– Não foi o padre que morreu, porque agora mesmo ouvi o “Toque do Silêncio” e achei que…?

– Não, não! – ela me interrompeu. – É que agora na Quaresma o padre Anderson vai rezar uma missa às 5h30 em todas as sextas-feiras, até a Páscoa. A música é por isso.

Eu é que estava mal informado, e por pouco não fiz uma vítima de verdade.

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