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Crônica da semana por Nilton Morselli

A Associação dos Peludos Iluminados

Em uma manhã de um dia qualquer, Pet’ópolis seguia seu curso de cidade turística. Era a única no país que ostentava o caso genitivo no nome, com o apóstrofo e a partícula inicial importados do inglês, a indicar não só a origem de seus fundadores como o respeito pelos animais. E o topônimo zoológico não foi por ocaso. Sua vocação de negócio era um chamariz aos visitantes. A inscrição “Cidade dos Animais”, em letras de concreto encravadas numa montanha, podia ser vista da rodovia, assim como a enorme estátua canina que o prefeito mandara instalar. Enquanto os humanos corriam de um lado para o outro, cumprindo suas rotinas diárias, algo estranho acontencia. Os cães e gatos da região, conhecidos por sua inteligência desenvolvida, estavam se reunindo em segredo para discutir um plano inusitado.
Após longas conversas em latidos e miados inteligíveis, eles decidiram fundar a Associação dos Peludos Iluminados (API), com o objetivo nobre de recolher e cuidar dos humanos abandonados, que eram muitos – dormiam nas praças, coretos e sob viadutos. O rumor sobre essa iniciativa logo se espalhou pela cidade, deixando as pessoas intrigadas e, algumas, um pouco preocupadas.
No começo, os humanos errantes eram recebidos com alegria pelos membros da API. Os cães e gatos ofereciam carinho, comida e, é claro, uma boa dose de lambidas e ronronares. Os humanos se sentiam acolhidos por essa nova comunidade peculiar e não tardaram em se adaptar à vida entre os animais. A maioria da sociedade aprovava a iniciativa, que não passou ao largo da imprensa internacional. Pet’ópolis ficou famosa mundialmente, mais do que já era.
No entanto, à medida que a API crescia e se tornava mais organizada, sua atuação começou a tomar rumos ainda mais inusitados. A organização não-governamental decidiu que, para evitar problemas de superpopulação humana no planeta, seria necessário esterilizar seus protegidos. O plano começaria na cidade, mas logo se estenderia para além das fronteiras.
No início, quando eram chamados para passar por procedimentos de castração química, os humanos não entendiam muito bem o que estava ocorrendo. Alguns se assustavam, outros se revoltavam, mas a API argumentava que era uma medida necessária para o bem-estar de todos. Além disso, os cães e gatos explicavam, com um ar de superioridade, que eles próprios passavam por procedimentos semelhantes para evitar a reprodução descontrolada. Alguns de suas espécies, diziam, ainda eram altamente atraídos pelos feromônios liberados durante os cios. O mesmo acontecia com certos humanos, argumentavam.
No entanto, à medida que o tempo passava, alguns casos extremos começaram a aparecer. Humanos eram convocados para passar por castração física, deixando muitos deles em choque e completamente constrangidos. A API tentava justificar tais ações alegando que era uma maneira eficaz de evitar o crescimento desenfreado da humanidade, sobretudo aquela tratada de maneira subumana.
Como se não bastasse, a situação ficou ainda mais bizarra. A associação começou a promover eventos públicos para arrecadar fundos e conscientizar a população sobre a importância da castração humana. Cartazes engraçados estampavam as ruas, com slogans como “Peludos Unidos por uma População Controlada!” e “Esterilização humana: um ato de amor”.
Os acolhidos, agora esterilizados, começaram a aderir ao estilo de vida animal. Alguns homens preferiam andar sem camisa exibindo suas marcas de castração como uma espécie de troféu estranho. As mulheres usavam colares em volta do pescoço com pingentes em formato de tesoura, simbolizando a “libertação” de sua fertilidade. Havia a desconfiança de que eram submetidos, também, a uma lavagem cerebral.
Enquanto tudo isso acontecia, a API continuava a recolher humanos abandonados e, é claro, a esterilizá-los. Eles levavam seu trabalho “humanitário” a sério, mesmo que muitos humanos não compreendessem totalmente a peculiaridade da situação. A Associação dos Peludos Iluminados se tornou uma força dominante na cidade de Pet’ópolis, com seu objetivo pitoresco sendo seguido de forma quase religiosa.
No entanto, a algumas vozes dissonantes começaram a surgir entre os membros da API. Cães e gatos mais sensatos começaram a questionar a ética por trás da esterilização forçada dos humanos. Eles se perguntavam se não estavam agindo de forma hipócrita ao forçar uma intervenção tão invasiva em outra espécie.
Esses questionamentos internos começaram a se espalhar entre os membros da API e, gradualmente, a associação passou por uma mudança de perspectiva. Eles perceberam que haviam ultrapassado os limites e estavam negando aos humanos o livre-arbítrio, a autonomia de escolha.
Uma reunião extraordinária foi convocada. Entre latidos e miados, tomou-se uma decisão drástica: encerrar as atividades de recolhimento e cuidado dos humanos abandonados. O “canil humano” que haviam estabelecido se tornara um lugar inabitável, pois a convivência entre os moradores se tornara insuportável. Reclamavam de tudo, a começar da comida, chamada de ração humana.
Os humanos esterilizados, antes gratos pelo cuidado e abrigo oferecidos pela associação, começaram a se estranhar. A ausência de uma família ou tutores que os acolhessem permanentemente levou a conflitos constantes e uma atmosfera tensa. As diferenças de personalidade, opiniões e interesses tornaram-se obstáculos intransponíveis para uma convivência harmoniosa.
A API percebeu que seu objetivo nobre de recolher e cuidar dos humanos abandonados não poderia ser alcançado da maneira que imaginaram. Eles se viram diante de um dilema: continuar a manter os humanos em um ambiente hostil ou reconhecer que a adoção responsável por famílias humanas era a melhor solução para seu bem-estar.
Com pesar e uma dose de autocrítica, a Associação dos Peludos Iluminados anunciou que ia mudar o foco. A diretoria entendeu que, apesar de suas melhores intenções, a ideia de esterilizar os humanos e mantê-los confinados em um “canil” não era a solução adequada.
A partir desse momento, a instituição redirecionou seus esforços para auxiliar abrigos de seus pares em condição inferior na escala evolutiva e promover a adoção responsável de cães e gatos de rua, seus irmãos de raça. Eles perceberam que sua verdadeira vocação estava em cuidar das próprias espécies, proporcionando-lhes lares amorosos e tutores dedicados.
Quanto aos humanos esterilizados que foram acolhidos pela associação, eles foram gradualmente reintegrados à sociedade. Embora alguns tenham encontrado dificuldades para se ajustar, muitos foram adotados por famílias humanas que se dispuseram a dar-lhes um lar permanente, amor e a oportunidade de viverem suas vidas plenamente.
Com o tempo, a API recuperou sua reputação e se tornou um exemplo de liderança. A história estranha da entidade e sua missão inicial de esterilizar humanos abandonados se tornou uma lembrança curiosa e, às vezes, hilária. Mas todos aprenderam a lição de que a liberdade de escolha e a consideração pelas diferentes espécies são valores imprescindíveis para uma convivência fraterna.

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