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Crônica da semana por Nilton Morselli

A bebida dos deuses

Por apreciar vinhos, sempre tive vontade de entender de vinhos. Mas até outro dia mesmo tinha certeza de que enólogo era o especialista em sal de fruta. Foi um bom começo saber que “eno”, do latim “oino”, significa vinho. E “logos”, claro, todo mundo sabe que “logos” vem do grego e remete a estudo. Assim, juntando termos de uma língua morta e uma do idioma dos filósofos imortais, que enólogo certamente é uma profissão chique e que exige, além de profundo conhecimento e alguma sofisticação, o completo domínio do vocabulário.

O segredo só pode estar nessas duas variáveis, como ocorre nas demais ciências. Portanto, acessível a qualquer um que se aventure a mergulhar no incrível mundo dessa bebida nobre. Comecei comprando um livro e arquivando textos e mais textos numa pasta do computador. Da leitura, cujo prazer era invariavelmente potencializado por uma taça de um Cabernet Sauvignon seco, descortinou-se um aluvião de informações deliciosas.

Foi uma incursão e tanto, por países e regiões produtoras, tipos de uva, cepas, modos de cultivo, safras, marcas, mercados, fermentação, acidez, conservação, envelhecimento, rolhas, grau etílico, temperatura, simbologias, enfim, temas e conhecimentos acumulados desde que o vinho desceu dos céus para alimentar a humanidade – alimentar e extasiar. Aprendi que um vinho e a companhia ideal transportam o ser humano para uma atmosfera etérea, um lugar místico, sob as bênçãos do deus Baco.

Mas, como ensina o professor Carlos Queiroz Telles no “Manual do Cara-de-Pau”, saber falar é tão importante quanto saber. Já me peguei pensando como seria estar numa mesa e impressionar os amigos com frases do tipo: “As nuances florais desse Merlot safra 2019 são insuperáveis”; “os taninos maduros deixam esse Malbec ainda mais aveludado”; “o que me agrada no Sauvignon Blanc são as notas suaves das uvas de Bordeaux, que conferem uma refrescância característica desse terroir único”.

Bonito, não? Agora imagine dizer isso dando aquela rodadinha na taça e aproximando-a do nariz. Porque o gestual – na verdade, ritual – é parte importante. O entendido de vinhos passa direto para o seleto grupo das pessoas refinadas, que certamente sabem escolher e manusear talheres, mas desde que não terminem a noite vomitando no tapete da sala. O bom apreciador de vinhos sempre sabe a hora de parar.

Mas, nesse caso, o paladar é o limite da dissimulação. Comprometer a qualidade do jantar com engodos semânticos, flagrados por papilas gustativas mais apuradas, não faz bem para a amizade. Conhecer a combinação certa pode garantir mais prazer à mesa, o que vai muito além do que se serve aos comensais.

Por isso a harmonização é um capítulo indispensável a qualquer principiante. Exige aplicação nos estudos, porque dela depende o equilíbrio entre o vinho e o prato, o que pode ser uma decisão um tanto subjetiva. Além de técnica, é preciso sensibilidade para escolher o rótulo certo para acompanhar a grande variedade de carnes, massas e legumes que podem constar de quaisquer menus.

A chance de errar é tão grande quanto o número de possibilidades à disposição no mercado ou nas cartas dos restaurantes. Como regra geral, pratos mais complexos chamam vinhos mais complexos e vice-versa. O que dificulta pôr em prática esse axioma é identificar a complexidade da bebida, classificação em que geralmente se enquadram os vinhos amadeirados.

Romantizadas ou não, as histórias por trás dos vinhos constituem outro delicioso aspecto aos iniciados nesse universo de sabores, texturas e aromas. Cada garrafa carrega um pouco da história dos nossos antepassados que nasceram em terras distantes. Nessa perspectiva, abrir um vinho assume a dimensão de homenagem. Viu? Já temos até o motivo para o brinde. Saúde!

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