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Crônica da semana por Nilton Morselli

Alma de artista

Desde que foi assistir pela primeira vez a um espetáculo circense, o caçula da família Imbrolioni decidiu que queria ser artista. Primeiro, palhaço, talvez trapezista ou mágico. Os pais já o elogiavam por seus desenhos infantis. Diligentemente, copiava figuras que via nos gibis, o que levou o menino a sonhar com o futuro profissional. Dizia que, quando crescesse, ia trabalhar com Maurício de Sousa, o pai da Turma da Mônica. Aos dez anos, num ímpeto de seu precoce espírito mambembe, fez as malas e anunciou: decidira ir embora com o circo que se instalara na cidade.
– O que você vai fazer lá, meu filho? – quis saber a mãe.
– Qualquer coisa. Sou artista.
A mãe o convenceu a prosseguir nos estudos, cursar artes cênicas e então poderia trabalhar no teatro, na televisão e no cinema. O pequeno Imbrolioni gostou da ideia. Na adolescência, quando já havia abandonado o desenho por falta de aptidão, começou a escrever poemas, conforme indicou o teste vocacional aplicado por uma professora. Vivia a fazer versos nos cadernos da escola, não prestava mais atenção nas aulas. Afinal, pensava o aluno, o que aquele mundo de cálculos e mapas, assim como a tabela periódica, acrescentaria a uma alma que exalava sensibilidade pelos poros? Sim, porque alma de artista tem poros, e bem nutridos por sentimentos sempre à flor da pele.
Adorava, porém, as aulas de literatura. Deslumbrava-se com os parnasianos e suas redondilhas menores. Forçava rimas primárias (coração com emoção, emotivo com altivo). Até conseguiu produzir um soneto digno de selo do Inmetro, que alguns colegas desconfiaram que era plágio. Um dia, ao estudar a Semana de 22, libertou-se dos versos decassílabos: aderiu sem pensar duas vezes a movimentos vanguardistas, como futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo e expressionismo. Seria, a partir de então, modernista. Às favas o rigor estético, a métrica e o lirismo com cheiro de naftalina.
Imbrolioni declamava seus versos no intervalo para as meninas do colégio, que fingiam admiração – continuavam, enquanto isso, curtindo sertanejo universitário no fone de ouvido. A formatura no Ensino Médio o distanciou dos maus versos, o que pode ter contribuído para libertar do purgatório as últimas almas do Modernismo. Morria ali o poeta promissor para o nascimento do autor de prosas, pois a ideia de um romance telúrico pululava em sua mente irrequieta.
Concluído o livro, com quarenta capítulos, Imbrolioni enviou cópias para várias editoras. Estava convicto de que criara uma obra à altura de um Pulitzer, um Jabuti ou, quem sabe, um Nobel. Anos se passaram e as respostas não vinham. O escritor bissexto, ainda inédito, recusava-se a fazer um lançamento independente. Considerava-se um incompreendido, o que apenas aumentava sua verve criativa.
Orgulhava-se do sobrenome italiano, cuja sonoridade remetia a um pintor renascentista, que bem poderia ter ajudado nos afrescos da Capela Sistina. Entre seus conhecidos, espalhou que o bisavô fora um importante escultor veneziano. Ninguém duvidava, para não perder o amigo. Foi daí que surgiu a ideia de fazer um curso de artes plásticas por a distância. O primeiro módulo foi dedicado à pintura em óleo sobre tela, gênero natureza morta. Reclamava que as aulas eram muito teóricas, queria mesmo era manipular pincéis, transpondo para as telas as figuras que encontrava na internet. Presenteou as tias com seus primeiros quadros, e as visitava de vez em quando para ver se elas haviam pendurado as telas na parede da sala. Quando ele tocava no assunto, as parentes desconversavam, oferecendo chá com torradas.
A segunda parte do curso foi voltado à escultura, figuras simples de argila e pequenos vasos de barro. Mas o devotado aluno aspirava a muito mais. Queria ver suas peças expostas em praças, adornando espaços públicos importantes. Durante um ano inteiro, produziu um Dom Pedro 1.º montado a cavalo e empunhando espada, em tamanho real. Convidou o prefeito a visitar seu ateliê, na esperança de vender a obra, talhada para uma comemoração à altura dos 200 anos da Independência. Exagerando na dissimulação, o político foi só elogios ao talento do rapaz, mas lamentou que os cofres públicos não estavam em condições de despender recursos para o setor cultural, em razão da crise. No caminho de volta à prefeitura, abriu o jogo com o assessor que o acompanhava:
– Aquele Dom Pedro está com a cara de um professor que tive no primário. E o cavalo não é propriamente um equino, está mais para muar subnutrido. O Imbrolioni que me desculpe, mas vou ter que gastar a verba da secretaria da cultura contratando aquela dupla sertaneja que está fazendo sucesso, cujo nome não me lembro agora.
Mas artista que é artista não desiste, sabe que o caminho para o sucesso pode ser longo e cheio de espinhos. Quando seus pais disseram que, não levasse por mal, mas seria melhor ele arranjar “um emprego normal”, pois já estava com quase 40 anos, Imbrolioni lançou a grande cartada:
– Estou abrindo um negócio! Para não desperdiçar meu talento, vou fabricar bustos de bronze, arte em que me especializei por meio de tutoriais no YouTube. Prefeitos e governadores estão sempre atrás de contratar escultores para retratar políticos, artistas, jogadores de futebol e cidadãos eméritos em geral. Vou vender pelo site.
Não demorou para receber a primeira encomenda de uma cidadezinha interiorana. Pediu fotografias, de vários ângulos, para retratar com a máxima precisão o deputado Peixoto Lima, que saíra da vida para entrar na história após dez mandatos e alguns escândalos. Jogou as imagens no computador acoplado a uma impressora 3D responsável por gerar um molde de acrílico. Restava somente o toque final das mãos hábeis do artista para que um busto surgisse de onde antes apenas havia um bloco disforme de bronze amolecido no fogo.
A primeira entrega do novo ateliê foi comemorada com champanhe. O artista foi convidado para a inauguração. A bandinha municipal começou a tocar e os fogos de artifício espocaram segundos antes do momento solene. Quando os familiares do homenageado puxaram o pano que encobria a obra, o sorriso deu lugar à decepção. O deputado Peixoto Lima estava com a cara do senador Ludowico Neres, que sempre fora mais que um adversário, fora inimigo político. Ainda por cima, estava “vivíssimo da Silva” e em pleno exercício do cargo.
Diante das piadas da população, o chefe do Executivo mandou retirar o busto. E não ficou só nisso: determinou à procuradoria que entrasse na Justiça para reaver o dinheiro, acusando o autor de ter vendido “gato por lebre”. O juiz da Comarca acatou as alegações. Acabou ali a carreira do “busteiro” Imbrolioni, que estava mais para “embusteiro”, sem nunca mais receber uma encomenda.
Mas Imbrolioni é resiliente. Depois dessa frustração, ainda tentou a música, a fotografia, o teatro amador, o cinema alternativo e a dança clássica, não necessariamente nessa ordem. A última notícia que os amigos têm dele é que está treinando para ser cuspidor de fogo e, ao mesmo tempo, malabarista – talvez pensando em retomar a ideia de fugir com um circo. Ninguém, entretanto, duvida que o grande Imbrolioni possua alma de artista e que algum dia encontrará sua verdadeira vocação.

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