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Crônica da semana por Nilton Morselli

As vacinas e o hambúrguer de prêmio

Um dos cheiros que mais me remetem à infância é o do hambúrguer do Bar do Alemão. Quem passasse pelos altos da Rua Prudente de Morais era alcançado pelo aroma daquela maravilha da culinária. No imaginário da criança que só conhecia a iguaria graças ao desenho do Popeye, hambúrguer era uma palavra mágica. Isso ajudava a tornar um simples pão recheado com carne e queijo ainda mais gostoso.

Levou tempo para que eu tivesse acesso a um deles. A história começa numa consulta na Clínica Pró-Baby, com o Dr. Fulvio Zuppani. Saí de lá com a indicação de tomar duas dezenas de vacinas – uma por semana – que teriam o condão de combater os sintomas de uma bronquite alérgica. O medicamento era armazenado na geladeira de casa, de onde era tirada uma dose todas as quartas-feiras.

No período da tarde, dona Nadir colocava a ampola numa caixinha de isopor com gelo e rumávamos a pé para a Drogalar, farmácia do saudoso Osmar Girotto, que funcionava na esquina debaixo do Bar do Alemão. Passávamos em frente, e da calçada dava para ver a chapa soltando uma fumacinha inebriante. Foi amor à primeira vista.

Não teve aquela do “na volta a gente compra”. Como o dinheiro era curto, minha mãe jogou a real: eu ganharia um hambúrguer ao fim das vinte aplicações, caso resistisse firme e sem chorar. Foi assim que, desde cedo, o menino de saúde frágil revelou-se resignadamente estoico, sem ter ideia da existência dessas palavras, que dirá de seu significado. Nós, os infantes dos anos 80, não éramos criados para ser príncipes nem tratados como tal. E sobrevivemos.

As vinte quartas-feiras seguintes foram torturantes, não somente pela espera do sanduíche dos sonhos, como pela vacina subcutânea que o saudoso Aimar Faria inoculava naquele antebraço franzino – mais ou menos no lugar onde se enfia a agulha de tirar sangue para exame laboratorial.

Apesar de todo o cuidado do aplicador, saía da farmácia com uma bola avermelhada próxima à picada certeira. O líquido entrava queimando e por ali ficava por algumas horas até se dissipar. Aguentava firme. Na semana seguinte, eu oferecia o outro lado, uma tática que desenvolvi para que o anterior, no espaço de quinze dias, ficasse completamente recuperado.

O estabelecimento do saudoso Credoval José Previdelli, o Alemão, era um restaurante muito bem frequentado desde o fim da década de 1960, quando foi fundado. Além dos lanches, numa época em que a expressão “hambúrguer gourmet” ainda não fora inventada, havia outras guloseimas no cardápio. As pizzas, a que mais tarde pude ter acesso, simplesmente foram as melhores que já experimentei.

O Alemão, sempre com o guardanapo no ombro, e a dona Eva, responsável pelo insuperável tempero do filé mignon, eram conhecidos dos meus pais. Além da paixão pelo Palmeiras, ele tinha a fama de ser um pouco mal-humorado, o que certamente não o impediu ser um comerciante de sucesso, porque a casa vivia cheia. As mesas do restaurante eram sempre muito concorridas.

Mas as algumas anedotas circulam até hoje. Dizem que um freguês perguntou quanto custava o x-salada. Seis reais, respondeu o dono do bar. O rapaz emendou: dá para fazer cinco? Alemão teria perdido a paciência: já está barato e você ainda quer desconto! O freguês respondeu: calma, seu Alemão, eu quis dizer se dá para fazer cinco lanches.

É claro que essas e outras que o pessoal ainda conta deve ser folclore, e também saudade do inesquecível Alemão Previdelli, que comandou a casa de sabores, amizades e boas lembranças. Ainda bem que seu filho Beto continua no ramo, no mesmo local e com a mesma qualidade.

O menino lombriguento aqui contava as doses na geladeira para saber quantas semanas faltavam para, enfim, saborear o hambúrguer. Findo o tratamento com as vacinas, na volta da última aplicação minha mãe e eu paramos no Alemão e nos acomodamos na segunda mesa à esquerda. Não demorou para o lanche quentinho chegar, com direito a premiação surpresa: uma garrafinha de Coca-Cola, refrigerante que eu tomava apenas em ocasiões especiais.

Ela pagou a conta e fomos embora realizados. Minha felicidade na infância foi feita de coisas simples. Nada vinha marcado com o signo da urgência, tudo tinha seu tempo para acontecer, após algum planejamento financeiro. Talvez um hambúrguer não fizesse diferença no orçamento familiar, mas era a oportunidade de ensinar que a recompensa nunca vem antes do esforço.

Lembrar desse episódio perto do Dia das Mães soa dentro de mim como uma homenagem à mulher a quem devo ser quem eu sou. É uma saudade infinita. Quem sabe neste fim de semana eu repita o gesto, indo saborear um sanduíche do Beto. Mas, ao contrário da infância, não garanto se conseguirei segurar a lágrima. Uma lágrima de agradecimento.

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