DESTAQUEMais recentes

Crônica da semana por Nilton Morselli

Já pro quintal!

Abro o aplicativo da “Folha” e vejo a manchete da manhã: Smartphones e redes sociais estão destruindo a saúde mental das crianças. A frase veio assim, solta, sem ser atribuída a alguém, um indicativo de que o jornal a encampou. Logo abaixo, a linha fina é tão direta quanto o título: evidência dos efeitos catastróficos do aumento do tempo de tela é esmagadora.

Só então li o chapéu, aquela palavra que identifica o tipo de matéria. Trata-se de um texto opinativo. Não resisto e clico para ler tudo. O autor é John Burn-Murdoch, repórter de dados do “Financial Times”. Como jornalista, sei que só as coisas importantes ocupam o lugar reservado às manchetes.

Confesso que fazia tempo que não via uma afirmação tão contundente no frontispício de um diário importante, onde não é comum haver matérias de comportamento. Primeiro, é bom esclarecer que o repórter de dados é um profissional novo nas redações. Murdoch se especializou em ciência de dados, “ramo multidisciplinar da ciência que envolve técnicas de computação, matemática aplicada, inteligência artificial, estatística e otimização com o intuito de resolver problemas analiticamente complexos, utilizando grandes conjuntos de dados como núcleo de operação”, segundo a Fundação Getúlio Vargas.

Nos últimos tempos, tenho me interessado pela ciência de dados, que ajuda muito na interpretação dos grandes temas e fatos do mundo. Geralmente, analisamos as coisas somente através dos conceitos que carregamos, o que pode levar a conclusões erradas. Mas voltemos aos smartphones.

O impacto das telas que carregamos para cima e para baixo é enorme. Murdoch é categórico: estudos mostram que quanto mais tempo os adolescentes passam nas redes sociais pior é sua saúde mental. Ele detalha alguns, todos conduzidos por academias renomadas.

O artigo me remeteu à infância, quando a vilã era a televisão. Os adultos diziam que a gente não podia ficar vendo desenho o dia todo, que devíamos ir para o quintal, quando não estávamos estudando na mesa da cozinha. A imóvel “deusa dos raios azulados”, como a definiu Drummond, hoje parece uma donzela indefesa perante os onipresentes celulares.

Já desconfiava que a criançada estava exagerando nas telinhas móveis. Já tinha certeza de que os pais não estavam percebendo o mal que fazem a seus filhos. Mas o artigo soou como um soco no estômago. Parece alarmismo – e é, pois o assunto é alarmante.

Antes que seja acusado de ser avesso aos avanços da tecnologia, ressalto que também sou adepto dela, mais por força da profissão do que por simpatizar com um tecladinho mixuruca em que digito com um dedo só. Mas não me deixo aprisionar.

Assim como nossos pais faziam, os de hoje precisam limitar o tempo de uso e mandar a meninada ir brincar de verdade, sob pena de uma geração crescer sem a noção tempo-espaço. Uma das consequências é achar que o mundo real pode ser acessado mergulhando a cara no digital.

Enquanto as telas podem ser janelas para o mundo, a porta de entrada para a vida adulta definitivamente não está nelas. E chegar à vida adulta com a cuca boa é a única chance de atingirmos a velhice de maneira digna. As relações pessoais são parte indispensável nesse caminhar.

O jornalista do diário inglês se diz pessimista porque, assim como não dá para impedir que uma pessoa coma de modo que não fique obesa, combater o vício em redes sociais depende de uma estratégia que ainda não foi inventada. Sou mais otimista. A ferramenta existe e sempre demonstrou sua proverbial eficiência. O bom e velho “já pro quintal!” é infalível.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *