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Crônica da semana por Nilton Morselli

Feitiço do tempo

Tem uma música da dupla Victor & Léo com um verso lacônico a expor um aparente paradoxo: “Não sei dizer o que mudou, mas nada está igual”. Mesmo dentro do contexto passional, parece confuso, mas é mais ou menos o que estamos vivendo nesse período pós-pandemia. Para quem perdeu gente da família – ou bem próxima – a diferença começa pela ausência, o vazio na mesa e no coração. Ainda estamos nos adaptando ao tal do novo normal, seja lá o que isso for.

Talvez você também tenha observado que muita coisa mudou. Não é que o mundo tenha ficado mais estranho do que já era, foi o nosso mundinho que ficou diferente em muitos aspectos. Pode ser que as alterações tenham começado antes do advento do coronavírus, e eu que não notei. Sou muito distraído e necessito de um clímax que vire a chave de forma brusca. São as águas mansas que nos carregam para mais longe.

A distância, aliás, é a nova marca do nosso tempo, e essa parece que veio para ficar. De uma hora para outra preferimos rezar só em casa, estudar em casa e comprar e nos divertir sem sair de casa. Claro que as condições econômicas em que o país foi jogado tem sua parcela de culpa, mas o fenômeno também passa pelas escolhas pessoais.

E as nossas escolhas são cada vez mais pelo individualismo, puxado pela dualidade política que polarizou o Brasil, na exaltação de um nacionalismo doentio ou na volta a um passado recente permeado por corrupção. De parte a parte, a divisão nitidamente aflorou o que de pior existia em nós.

Seria o fim do homem cordial preconizado por Sérgio Buarque de Hollanda em “Raízes do Brasil”, aquele que “precisa expandir o seu ser na vida social, precisa estender-se na coletividade – não suporta o peso da individualidade, precisa ‘viver nos outros'”? Pois deixamos de viver nos outros quando apontamos o dedo para o migrante pobre, quando deixamos de pensar no semelhante marginalizado.

Parece que aquela civilização avançada que habitou o planeta deixou, de repente, de existir. A geração Toninha Monteiro, que organizava jantares memoráveis para a caridade, já parece coisa de um passado remoto. Falta mão na massa e coração aberto às jovens senhoras de hoje – e aos jovens senhores também. Que lá do céu a saudosa benemérita, que muita falta faz, possa nos inspirar novas noites de brilho, pois há espaços vazios prontos para ser preenchidos, tanto nos salões de festa quanto no estômago dos menos favorecidos.

O preenchimento desses espaços foi prejudicado pelo distanciamento social, importante naquele momento trágico. Mas já é hora de retornar à normalidade, caso contrário teremos sido vencidos pela passividade e, pior ainda, pelo comodismo que ameaça sedimentar em nós uma incurável apatia.

A mesma comunidade que fundou a Santa Casa, o Hospital de Olhos e os clubes sociais, construiu um Cine São Pedro, uma Matriz de São Sebastião e um Taquarão em 90 dias hoje não se reúne para planejar e executar algo grandioso. A reforma de uma praça costuma se arrastar por tempo suficiente para erguer um arranha-céu. Juro que não dá para saber ao certo onde é que a coisa começou a dar errado.

Onde antes havia cultura pulsante e jovens movidos pela inquietude dos hormônios, a impressão reinante é que agora nos limitamos a esperar pelo Carnaval. Isso é muito pouco para a formação de uma consciência plena de cidadania. As lacunas abertas no vazio entre março e janeiro certamente vão nos custar caro no curtíssimo prazo de uma geração. Afinal, é sempre bom lembrar que “a gente não quer só comida / a gente quer comida, diversão e arte”.

É ingenuidade pensar que o mundo do século 21 possa voltar a ser o mesmo que outrora operava em modo analógico. A tecnologia que dita como interagimos com ele está passando dos limites e vai nos surpreender ainda mais, para o bem e para o mal. Resta saber qual deles terá mais peso nessa balança maniqueísta, que sempre rouba um pouquinho para os mais fortes. O que não podemos deixar acontecer é a dissolução dos laços que nos distinguem dos aparelhos digitais, antes que se tornem uma extensão dos nossos braços. Por menos tela e mais olho no olho.

Não dá para culpar somente a classe política, como temos por hábito. Somos cúmplices do marasmo em que nos perdemos ao aceitarmos papéis menos relevantes no teatro da vida. Perdão se estou soando meio pessimista, mas a realidade salta aos olhos, como na música do Victor & Léo, segundo a qual “borboletas sempre voltam”. Seja como for, precisamos reagir com urgência. Talvez ainda exista dentro de nós um pouco daquela energia que moveu os que nos antecederam por aqui. Talvez esse vácuo seja porque o velho tenha morrido e o novo ainda não tenha nascido. Ou então tenhamos simplesmente que nos render ao feitiço dos nossos novos tempos.

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