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Crônica da semana por Nilton Morselli

Meus bíceps

Sou prova de que um projeto de saúde inclui exercício físico. Do futebol na rua, passando pelas quadras esportivas e campos de várzea, cheguei à academia de musculação. Foram entradas e saídas, confesso, forçadas pelo excesso de trabalho. Mas nunca deixei de me movimentar, pois sou mais de praticar esporte do que de assistir. A maioria das pessoas diz não encontrar satisfação nisso, talvez porque ainda não descobriram o prazer da serotonina e o barato da endorfina.

Se hoje não consigo viver bem sem a hora diária de exercício, deve ser por dois motivos, o primeiro tem a ver com a dor de consciência. Em seguida, a cobrança do corpo. Há quase vinte anos, a decisão de me matricular pela primeira vez na academia certa me trouxe ótimos resultados. O instrutor, educador físico especialista em emagrecimento, passou três ou quatro dicas de alimentação, e lá se foram dezenove quilos, nunca mais recuperados. Disciplina é tudo.

Sei que seria difícil controlar o que vou propor, mas os planos de saúde poderiam encontrar uma forma de dar algum desconto às pessoas que vão à academia regularmente. Elas devem usar bem menos os serviços médicos, e certamente existem dúzias de pesquisas científicas confirmando essa tese.

Se uma casa religiosa, de qualquer doutrina, é voltada à “malhação” do espírito, os aparelhos de ginástica respondem também pela parte emocional, sem falar nos ganhos físicos e diria até de elevação espiritual. As pessoas que nunca frequentaram esses templos de preservação da saúde e da autoestima não fazem ideia do que estão perdendo. Os iniciados, porém, haverão de concordar que nada se compara a um ambiente de academia.

Lá, somos naturalmente levados a exercitar a paciência e a convivência fraterna. Quase sempre temos de esperar o colega cumprir as suas séries e desocupar o espaço. Há os que ficam vendo o celular com o buzanfa no aparelho, o que está longe de ser motivo de estresse. Enquanto isso, usamos outro aparelho e fica tudo bem.

A alternativa é o trabalho em equipe, quando pedimos para alternar o uso. Nesse caso, a regra é ajustar a carga que a pessoa levantava assim que sair. Ela vai retribuir a gentileza quando terminar a série. Nós, os acadêmicos da hipertrofia, somos educados em famílias nobres, verdadeiros gentlemen. Só não convém exagerar na albumina para evitar constrangimentos de ordem intestinal.

Embora existam muitos grandalhões convivendo em poucos metros quadrados, alguns com cara de bravo, nunca sai briga numa academia. Ninguém encrenca, por exemplo, se tiver de aguardar pelo leg press ou peck deck. Perdão, mas somos íntimos de nomes e expressões só usados da catraca para dentro.

Uma exceção, pela covardia do episódio, ganhou repercussão internacional: o caso do “empresário” que agrediu uma moça em São Paulo, no ano passado, porque ele queria usar o aparelho em que ela estava. O banimento é a penalidade que consta da súmula vinculante de um suposto regimento interno universalmente empregado nesses casos, sem prejuízo das sanções judiciais cabíveis.

Os tipos encontrados são os mais variados, de iniciantes, “frangos” (que estão mais para lazer) a mastodontes de corpo bilioso e alma de lorde inglês. Ajudar o colega a posicionar a barra com anilhas, quando solicitado, é outra prova do espírito de companheirismo reinante. Quase todo mundo tem ou ainda terá uma tatuagem.

Nós, frequentadores de academia de ginástica, adoramos ver a nossa imagem refletida enquanto puxamos ferro. Por isso, a academia é uma ilha cercada de espelhos por todos os lados. Sempre me pego perguntando: espelho, espelho meu, existe aqui alguém mais forte do que eu? Ele responde impiedosamente: você quer a lista por ordem de chegada?! Aí olho de soslaio para o lado e me motivo a pegar um halter um pouco mais pesado que o do treino anterior.

Mas a outra regra não escrita em um ambiente de academia é: não fique olhando muito. Um tríceps trabalhado nunca deve ser observado por mais de três segundos, sob pena de você ser mal interpretado ou simplesmente passar por invejoso. O negócio é se concentrar no seu programa de exercícios e só parar para beber água, descansar o músculo ou, claro, olhar o espelho.

Como o ambiente é misto, o mesmo vale em relação às mulheres. Se o seu objetivo é arrumar namorada, a academia decididamente não é o seu lugar. Não há espaço para azaração. Mulher de academia, para mim, é homem. Tudo bem, a carne é fraca, mas o músculo é forte, e o foco é enrijecê-lo ainda mais. Elas, assim como você, estão lá para isso. Se fosse para outra coisa, estariam no Tinder ou no barzinho.

O mecanismo de recompensa numa academia está, única e exclusivamente, no binômio saúde aliada ao prazer de um corpo um pouco mais delineado por músculos pronunciados. Isso evidencia a persistência do aluno. Nos primeiros dias você até pode achar estranho tantos marmanjos se admirando no espelho. Mas na semana seguinte você já é um deles. Fazer o muque para apreciar a evolução do próprio bíceps é gesto quase involuntário. Aí não tem mais volta.

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