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Crônica da semana por Nilton Morselli

Crônica para o futuro

Hoje comemoro 95 anos. Comemorar não é o verbo apropriado, embora muitos digam que chegar a uma idade dessas já seja motivo de júbilo. A maior das celebrações é o fato de caminhar com as próprias pernas e não necessitar de que outros pensem por você, mesmo que algumas outras partes não estejam cem por cento – melhor não entrar em detalhes. Fazer aniversário é sempre bom e, a essa altura, oportunidade para balanços de prós e contras. Isso sem falar das lembranças, que nos castigam ou nos orgulham.
Compor a elite chamada de terror do INSS é uma façanha, pois já estou aposentado há quatro décadas. Mas nunca parei, e talvez aí esteja uma explicação para a longevidade, paralelamente à alegria de nunca ter fumado ou usado drogas ilícitas. Ter me matriculado na academia e retomado a bicicleta quando estava na meia-idade também foram decisões inteligentes, das quais não me arrependo.
Computei 1.456 crônicas escritas (1.457 com essa), quase todas publicadas e algumas engatilhadas para serem lidas somente quando eu partir – decretei “sigilo de 100 anos de idade”, que expirará, portanto, em cinco anos, quando já estarei inimputável ou provavelmente inalcançável aos vivos. Se tiver a honra de me comunicar do além, que todos fiquem tranquilos: nada falarei de comprometedor, principalmente dos amigos. Já dos inimigos, a gente vê depois.
Adianto que o balanço é positivo. Decidi escrever porque uma vez, na minha vida de jornalista, fui entrevistar um numerólogo e o homem – com cara e traje de charlatão – garantiu-me que eu viveria até os 95 anos. Se ele estiver certo, não brindarei a virada para o ano de 2071. Mas tenho fé que a previsão dele esteja errada, mesmo porque me sinto bem. Ontem mesmo pedalei dez quilômetros e voei no patinete com amigos mais jovens. E já marquei uma viagem até a Lua com a turma da natação.
Por falar em juventude, ao longo dessa trajetória, vi muita coisa: o nascimento do telefone celular, do smartphone e da comunicação holográfica. Mas nada que impactasse tanto a sociedade, em termos de tecnologia, quanto a invenção do carro voador. Antes, quando os automóveis eram condenados a rodar somente pelo chão, era tudo mais difícil. Os mais novos nem acreditam nisso. A redução no número de acidentes com vítimas foi drástica, agora raramente ouvimos falar.
Mas pouca coisa foi tão importante que o avanço da medicina. Quando a ciência venceu o câncer, eu me lembro de ter escrito um texto que saiu em várias plataformas. Deve ter sido um dos últimos impressos em papel. Que me desculpe o Gutenberg, mas a migração total do papel para o digital foi uma maravilha, pois eu lembro que as edições tinham de ser entregues na casa dos assinantes ou tínhamos de ir a uma banca de praça para comprar. Isso foi acabando aos poucos, assim como outras esquisitices, como cigarro. Até há algumas décadas as pessoas pagavam por um produto que as intoxicava!
Há mais ou menos 60 anos, lembro de ter baixado um aplicativo num aparelho que chamávamos de smartphone (era uma tela portátil com poucas utilidades) que transformava voz em texto. Foi uma sensação. Agora, aqui estou transferindo meu pensamento para o formato digital sem tocar em absolutamente nada. Isso já pareceu mágica para mim, que cheguei a usar máquina de escrever, um aparelho mecânico que imprimia no papel a letra pressionada com o dedo, formando palavras e frases.
Ainda sobre tecnologia, no longínquo ano de 1988, vi um computador pela primeira vez e me encantei com o teclado macio e a tela preta com letras verdes fluorescentes. No ano seguinte, já o operava com destreza para editar jornal, mesmo sem entender como aquela máquina fantástica processava as informações em seu interior. Não podia imaginar que eu estava tendo contato com o futuro, que aquilo ia revolucionar o mundo, as profissões e os relacionamentos.
Na década seguinte, assisti ao nascimento da internet discada, uma coisa lenta que logo evoluiu, resultado de investimentos pesados. Posso me gabar de ter presenciado o apogeu e o acaso da televisão, o surgimento das TVs por assinatura e das redes sociais. A sociedade pouco evoluída da época usava as chamadas redes sociais para arrumar confusão, apesar de que havia pessoas (as educadas) que sabiam usar com inteligência.
Digo que tenho saudade desse tempo, que passou muito rápido, tão rápido quanto as pessoas que passam pela nossa vida. Se tenho arrependimentos? Claro, e muitos. Vamos aos principais: não ter valorizado como deveria algumas pessoas, não por maldade, mas por descuido. Não ter visitado mais a casa dos irmãos e dos amigos enquanto estavam por aqui. Ter me prendido a coisas materiais. Ter viajado e aprendido pouco. Ter me calado quando poderia dizer eu te amo. Há outros arrependimentos, porém menos importantes.
Hoje recebi muitos parabéns, mas não tantos quanto gostaria. Pois muita gente existiu que não esquecia dessa data, gente que agora só existe em pensamento. Viver além da média e com saúde é ótimo. Mas inevitavelmente há intercorrências dolorosas, sobretudo a de ver gente mais nova e querida partindo antes. Assistir às mudanças do mundo às vezes também dói, pois pode dar a sensação de que aquele em que vivemos os melhores anos da juventude hoje são apenas retratos puídos na memória. Mas não me queixo, pois sempre alimentei a certeza de que ultrapassar os limites da expectativa de vida é uma dádiva quando não permitimos que a vida seja apenas uma expectativa.

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