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Crônica da semana por Nilton Morselli

Tipos em evidência

As ciências psicológicas e comportamentais, por vocação, têm se aplicado a explicar os tipos de pessoas. Citá-los todos exigiria, primeiro, que este presunçoso os conhecesse com alguma profundidade, o que não é o caso. Nem mesmo seria possível em espaço pequeno de jornal. Resta, então, parolar sobre as impressões cotidianas a respeito do semelhante.
Por falar em semelhante, mesmo os indivíduos mais iguais têm suas diferenças, e não são poucas nem superficiais. Em uma pequena amostragem comunitária já se nota a variedade. Criada sob os mesmos usos e costumes locais, gente que pensa e age diferente é a normalidade, haja vista o livre arbítrio. Até aqui, tudo sob controle, desde que as atitudes estejam dentro da lei, da ética ou da etiqueta social.
Quando esse limite é ultrapassado têm-se as anomalias que são capazes de diferenciar um tipo bem destacado de pessoa: aquelas que são propensas a furar uma fila, a enganar no troco, a aceitar uma propinazinha ou mesmo a assaltar um banco. Essa gradação, evidentemente, é a título de exemplo, porque uma esperteza para encurtar um tempo de espera não quer dizer que o sujeito possa necessariamente descambar para um roubo a mão armada. Mas o mecanismo cerebral é o mesmo: a vantagem indevida.
Pessoas que crescem sob o mesmo caldo cultural tendem a tomar atitudes parecidas em determinadas situações, inclusive nas extremas, mas que exigem um dose extra de sangue frio. Para que elas sejam mais ou menos racionais, depende em parte do preparo intelectual. O que mais pesa, entretanto, é um componente que foge à influência de fatores externos: o nível de equilíbrio emocional que cada um desenvolve, segundo suas experiências de vida. Mais Daniel Goleman que isso impossível.
Outro dia, tomando um lanche, ouvi a atendente comentar: nem parece que estou trabalhando no mesmo lugar. Hoje só peguei gente educada. Ela se via fazendo o serviço de três, pois os colegas não haviam ido trabalhar no feriado e o suprimento não havia dado conta de tantos pedidos para uma quarta-feira preguiçosa. Teve até cliente telefonando para elogiar a qualidade do sanduíche. “Se fosse todo dia desse jeito, teria mais prazer de trabalhar”, completou. Detalhe: estavam apenas ela, um chapeiro e um entregador, e nenhum dos clientes saiu insatisfeito.
Talvez uma conjunção de astros e o efeito de um feriado religioso tenham levado os educados, os boas-praças e os que sabem rir de si mesmos a saírem de suas tocas. E como esses têm feito falta nas ruas nesses tempos de estranhamento eleitoral, que fez os homens e as mulheres cordiais (raça superior na escala evolutiva que Sérgio Buarque de Holanda identificou na formação do Brasil) se recolhessem – há quem supunha que teriam fugido para as montanhas. Mas não, eles só estão observando o movimento da horda, na esperança de que ela logo retome seu lugar na história.
As ideologias e – santo Deus! – as crenças religiosas têm suscitado antagonismos até mesmo entre irmãos e amigos de maternidade. A coisa começa na provocação irônica e às vezes acaba em ameaças de que “ai de você se puser a mãe no meio”. Alguns espécimes da espécie humana que encontramos por aí estão de fato irreconhecíveis. A troco do quê? Da defesa de um ponto de vista que notabiliza políticos profissionais que sequer sabem da nossa existência e do que vamos – e se vamos – comer no almoço.
O tipo mais agressivo é aquele que depende da vitória de um ou de outro para manter ou reconquistar a boquinha, pois foi incapaz de meter a cara nos livros para passar num concurso público. Esses até dá para entender, pois estão defendendo a própria sobrevivência. Impossível de acreditar é o ser capaz de chegar a gestos extremos em nome de uma bandeira partidária, acreditando que sem a qual tudo estará perdido. Lamento informar, mas a história e seus processos de mudança não terminam nunca, contrariando Hegel e Fukuyama. Heróis e homens providenciais são figuras ficcionais.
Se no futuro breve conseguiremos voltar a discutir política de uma forma civilizada é uma pergunta difícil de responder. O mais provável é que esse clima de debate da Globo impere por mais um tempo – e sem um William Bonner para pedir calma –, condição ideal para que tipos repulsivos sigam com alguma evidência. Mas nada que a cordialidade garantida pela boa convivência dos contrários não possa dissipar. Para o bem da atendente do carrinho de lanche e do resto da sociedade.

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