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Crônica da semana por Nilton Morselli

Um pouco já basta

Como todo bom brasileiro faço minhas apostas nas loterias da Caixa. É um gesto meio instintivo, só jogo quando o prêmio está acumulado. Porém, tenho medo de tirar a sorte grande, de ganhar uma bolada na Mega-Sena. Parece contraditório – e é. O ser de uma coisa finita é o germe de sua contradição, mas deixemos a dialética para depois porque estamos falando de dinheiro.
Sei perfeitamente o que faria com o prêmio principal de uma Mega da Virada, grana suficiente para um “dolce far niente” para o resto de meus dias. O problema não é esse, porque o mercado de aplicações de renda fixa não é tão complicado como parece. Os fundos DI, conservadores e com baixo risco, seriam suficientes para uma renda vitalícia nababesca. O dilema está exatamente aí: todo classe-média que fica rico quer parar de trabalhar.
Mas tudo bem. Digamos que eu me desse ao luxo de pendurar as chuteiras em plena fase ativa. (Sei de gente que, com a minha idade, ainda nem começou a trabalhar e pelo jeito não está a fim de se arriscar.) No começo, seria legal ter tempo e recursos para tudo. Depois, o tédio. A ociosidade e a consciência pesada me levariam a abrir um negócio para socializar meus ganhos, o que me tornaria uma espécie de capitalista semi-selvagem. Sem experiência na exploração da mais-valia, em poucos anos o empreendimento iria à bancarrota.
A outra opção seria, inescapavelmente, a vida mansa, pois não estaria rico, apenas. Estaria milionário se acertasse as seis dezenas de uma extração como a de sábado passado: R$ 317 milhões. Um dos apostadores embolsou R$ 158 milhões e o outro bilhete era de um bolão de seis moradores de Votuporanga. Um advento de tamanho calibre exige uma mudança radical, nem se a pessoa não a deseje.
A primeira providência que o bom juízo recomenda seria trocar imediatamente de cidade, um lugar em que ninguém nos conhecesse. E tomando cuidado para não fazer como a Família Buscapé do divertidíssimo filme homônimo de 1993, que se entrega a extravagâncias ao se mudar para uma mansão em Berverly Hills depois da descoberta de petróleo em suas terras. Discrição é importante, mas como ser discreto com um Porsche na garagem? Ninguém com a conta bancária bufando continuaria andando de Onix.
Os casos envolvendo ganhadores de loterias assassinados assustam e ao mesmo tempo comprovam que permanecer na mesma casa, levando a mesma vida, não é uma boa decisão. Agindo assim, um novo milionário vira alvo fácil de criminosos e do famoso golpe do baú. Isso significa que o felizardo precisa mesmo abandonar seu estilo de vida, o que muitas vezes o obriga a viver longe de tudo o que forjou sua personalidade, inclusive dos velhos amigos.
Sinceramente, não sei se um caminhão de dinheiro valeria uma mudança drástica a essa altura da vida. Nada que me tirasse o sossego de uma existência simples me faria mais feliz do que sou hoje. Nada me faz esquecer que caixão não tem gaveta, e a história mostra que pouca coisa é mais volátil que a riqueza. Ela sempre troca de mãos com muita rapidez. Uma herança se liquefaz em uma ou duas gerações. Já a inteligência é a mais elevada e duradoura transmissão geracional. Se seu filho se interessa pelos estudos, você já lhe deixou a herança. Por sua vez, excesso de dinheiro e falta do que fazer produzem idiotas presunçosos.
Tem gente que diz que ajudaria a família e as instituições de caridade se a sorte lhe sorrisse. Bobagem. Quem não socorre um irmão necessitado de pouco, durante um tempo de aperto, ou se recusa a dar uma pequena contribuição para uma casa filantrópica, continuaria agindo da mesma forma. Aquele que não sabe dividir o pouco também não conseguirá repartir o muito.
O prêmio acumulado da Mega-Sena é um sonho intangível e até meio infantil. Fingimos ignorar que um jogo de azar é o mesmo que arremessar um punhado de sal numa piscina olímpica e depois tentar recolhê-lo com as mãos. Mesmo assim, tentamos. Não vou deixou de fazer a minha fezinha, mas torcendo para ganhar apenas alguns milhares de reais. Nada que mereça uma notícia na imprensa. Quando o pouco é o suficiente, o muito é demais.

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