DESTAQUEMais recentes

Crônica da semana por Nilton Morselli

O parto de canções eternas

Dias desses assisti a “Resgate, um Projeto de Memória Coletiva – Documentário sobre os festivais de música realizados pela ATE/UTE”. Essas siglas eram, respectivamente, da Associação e da União Taquaritinguense de Estudantes. A atividade cultural e política – variáveis impossíveis de separar – dessas entidades já foi dissecada por Douglas Braga no livro “Alguma Memória” (2018). E agora, em boa hora, o audiovisual veio para fechar o ciclo de uma era que gostaria de ter vivido. Sempre atrasado, cheguei um pouco depois.
As canções do documentário são belas, e algumas poderiam figurar qualquer álbum da MPB. Idealizado por Ico Curti e amigos, a fita me fez viajar na ideia de como foram paridas essas composições, nas circunstâncias daqueles tempos bicudos, sob ditadura. E pensar sobre como é difícil fazer música (para quem nasce sem o dom) e de como é fácil fazer música (para quem é agraciado com esse talento).
Algumas composições nascem como filhos de um parto demorado e dolorido. Outras, como relâmpagos: aparecem de repente, cortando o céu do cotidiano, como se fossem psicografias. Por ser destituído do talento em questão, admiro quem o tem. Resta-me apreciar a arte musical e os gênios que fazem dela matéria imprescindível à alma. Então, aqui vão as histórias – em três tempos, três mundos, três corações – de como nasceram canções que atravessam gerações.
Era 1917. Pixinguinha, com seu piano inquieto, tinha só 20 anos e já tocava como se tivesse vivido duzentas vidas. No Rio de Janeiro de chapéus de palha, bondes e cafés apinhados, ele compunha choros e maxixes como quem respira. Numa tarde quente no subúrbio, enquanto esperava os amigos chegarem para um ensaio, sentou ao piano da sala. Os dedos caminharam meio sem querer, tropeçando numa melodia terna e doce. Tão doce que fugia do recém-criado samba e flertava com o samba-canção, ritmo que ainda nem nascera:
“Meu coração / não sei por que…”
A letra viria anos depois, em 1936, com Braguinha, e ganhou o Brasil na voz de Orlando Silva. Mas aquela melodia que os brasileiros já haviam aprendido, já dizia tudo. Pixinguinha, que era homem de poucas palavras e muita alma, parou, sorriu sozinho, e soube: tinha feito um choro que falava de amor, mas de um jeito que até os tristes cantariam.
Londres, 2010. Adele estava recém-saída de um coração partido. Havia terminado um relacionamento intenso, que ela acreditava não ter data para terminar. Com um piano, um caderno e um turbilhão de sentimentos, ela foi para Malibu, em um retiro criativo. Lá, conheceu Dan Wilson, produtor e compositor. Sentaram-se os dois, ela provavelmente com olhos marejados, e começaram a conversar. Mais do que falar de música, Adele falou da dor, da perda, do desejo silencioso de ver o outro feliz – mesmo sem você.
E então nasceu “Someone Like You”. Escrita em poucas horas, com lágrimas e verdades, como se cada palavra lavasse um pedaço da alma. A canção virou um hino para corações despedaçados do mundo todo, porque foi feita exatamente no momento em que o dela ainda doía.
Estamos na São Paulo de 1959. Vinicius de Moraes já havia experimentado o amor em tantas formas que parecia saber mais sobre o coração humano do que qualquer terapeuta. Mas naquele ano, andava introspectivo. Carregava uma saudade sem nome, um amor interrompido, e uma certa melancolia. Mas ele se apaixonava fácil, como lembra Ruy Castro. Em um desses arroubos, cantarolou:
“Quando a luz dos olhos meus / E a luz dos olhos teus / Resolvem se encontrar…”
A melodia de “Pela Luz dos Olhos Teus” veio rápido até para os padrões do poetinha, e um amor em forma de canção se eternizou. Vinicius a cantou na coletânea “Bossa Nova Mesmo”, de 1960. Mas a música ficou gravada em nossos ouvidos nas vozes de Miúcha e Tom Jobim.
*
A quem se interessar: o documentário “Resgate” pode ser visto no YouTube. Basta digitar parte do nome para encontrá-lo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *