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Crônica da semana por Nilton Morselli

Leituras adiadas

Olho para livro ao lado da cama, ele parece olhar para mim. Penso: agora não, preciso cozinhar, lavar a louça, sair para trabalhar, fazer caminhada ou simplesmente dormir. E assim se prolonga a autossabotagem literária. Os dois livros comprados há três meses – e já começados – são os primeiros da pilha que se avoluma. Vai dando uma angústia.

A sensação é a mesma de uma decisão importante que tem de ser tomada, mas a procrastinação não permite. Como ultimamente as decisões importantes estão cada vez mais raras, as leituras adiadas constituem o principal peso na consciência.

Para alguém que se propõe a escrever para outros leitores, ler é ainda mais obrigatório. Mal comparando, subtrair essa prática do cotidiano é o mesmo que o mecânico abrir mão de sua caixa de ferramentas ou o cardiologista consultar o paciente sem um estetoscópio.

Mas essa é a condição sine qua non não só para jornalistas. Todos os profissionais dependem de jornais e livros se quiserem se manter informados a respeito do mundo e de suas carreiras. As publicações não excluem outras fontes de informação e formas de requalificação, sobretudo na era digital em que vivemos.

A literatura também tem o caráter de diversão, e é um barato se divertir enquanto se adquire cultura. Há os que se entregam ao entretenimento assistindo a séries de TV, maratonando temporadas madrugada adentro, assim como leitores que avançam páginas e capítulos na ânsia de saber como terminará aquela história.

Nada contra, mas sou uma pessoa fora de série, no sentido de não assinar a Netflix ou a Globoplay. Prefiro a companhia de livros físicos, por uma questão de hábito e porque a letra impressa me seduz, a compleição dos parágrafos parece dar concretude ao enredo, a ponto de tornar real a ficção e conferir leveza às leituras mais densas.

Um bloco de texto é um desafio à interpretação, um mergulho nas profundezas da alma do escritor. Nesse transe, é mágico pegar as palavras com as mãos, sentir “suas curvas e suas retas”, como pontificou Guilherme de Almeida, juntar as que a separação silábica desuniu e decifrar seus contornos ora vibrantes, ora suaves.

É por isso que deixar um livro de castigo, não lhe dando a atenção devida, é um crime que não prescreve. Um dia sem leitura é um dia perdido, posto que é impossível retroceder no tempo para colocá-la em dia. Estar-se-á sempre e de alguma forma atrasado, até mesmo em relação aos que ainda não se entregaram a esse prazer, porque a eles é concedido o perdão pela ignorância.

Um iniciado na arte de ler deve cultivar o hábito como a uma frágil orquídea, em cujo entorno borboletas coloridas fazem o seu balé enquanto abelhas haurem o néctar vital. É assim, com a indispensável ajuda dos livros, que a vida pode ser mais docemente bela.

Prometi retornar à leitura diária, mesmo que em detrimento de outros afazeres. Como resistir aos olhares piedosos lançados pelos livros que dormem comigo? Uma piedade quase chorosa por este leitor faltoso, que, ao deixar de devorá-los, já dá sinais de uma lancinante desnutrição literária.

Ilustração: Freepik

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