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Crônica da semana por Nilton Morselli

Músicas descartáveis

O sertanejo universitário é um sucesso, mas nem por isso algo a se comemorar na cena cultural brasileira. Que me perdoem os que o adoram, mas ele só não destruiu a música sertaneja verdadeira –de raiz–, porque criou um gênero à parte. Tanto investimento resultou em um movimento com identidade própria, e ainda assim muito pobre musicalmente, com raras exceções.

As canções são uma cópia uma da outra, mas nem por isso se ouve falar em casos de plágio. Nunca a indústria cultural levou tão a sério a produção em série. A temática é sempre a mesma. Há algumas em que se troca um ou outro acorde. Entretanto, a fórmula funciona, e funciona bem, rendendo muito dinheiro a artistas que também se copiam no timbre, nos vibratos e trejeitos.

Milhões de jovens cantam, em uníssono, versos como “Amoreco, amoreco / Se você voltar, eu saio do boteco / Amoreco, amoreco / To com saudade desse nosso nheco-nheco”. Esse tipo de composição domina a maior parte das emissoras de rádio, que deixaram de lado poemas musicados como esse: “O Sol vermelho se esquenta e aparece / O vergel todo agradece / Pelos ninhos que abrigou / Botões de ouro se desprendem de seus galhos / São as gotas de orvalho / De uma noite que passou.”

O contraste é gritante. De um lado, o lirismo que brota da terra, do ranger dos carros de boi, da solitude dos sertões e dos velhos festivais de viola. De outro, um ritmo acelerado embalado por refrões fáceis e coreografias pensadas para o streaming. A poesia da vida simples cedeu espaço à urgência da fama instantânea.

Não é difícil entender por que o sertanejo universitário faz tanto sucesso. É fácil, é repetível, é dançante. Serve para embalar a cerveja do fim de semana, acompanhar o coração partido de quinta-feira e até para virar legenda de foto no Instagram. A toada vira trilha sonora de consumo, não de contemplação.

Mas há um custo. E não se trata só do preço do ingresso para ver um show repleto de efeitos especiais. Trata-se do custo cultural de se perder a essência da música brasileira. E o que é ruim ainda pode piorar, porque já se está produzindo canções com inteligência artificial –da letra até a voz.

A música sertaneja de raiz tinha uma vocação quase documental. Era crônica cantada da vida no campo, das despedidas na porteira, das mães rezando o terço ao entardecer. Hoje, parece que basta rimar “sofrência” com “cerveja” e “coração” com “solidão”, e pronto: hit garantido. Os modões antigos, com seu dedilhado simples e letra carregada de sentido, perderam espaço para as produções milionárias com drones e artistas mais preocupados com o shape do abdômen do que com o peso das palavras.

Ainda assim, é preciso reconhecer: o sertanejo universitário encontrou seu público. Há duetos muito bons, afinados, vozes bonitas. Mas a indústria se alimenta da repetição e de lucro –e nisso o gênero é imbatível. Mas é preciso que, de tempos em tempos, se desligue o som da balada e volte a escutar um Almir Sater, um Tião Carreiro, uma Inezita Barroso e duplas que mantêm bons repertórios. Não por nostalgia, mas por necessidade.

A música –a de verdade– não vive de modinha. Ela resiste, nas discotecas domésticas ou escondida numa frequência esquecida do rádio. E quando menos se espera, ela volta no canto de um violeiro solitário. No pedido do ouvinte mais velho que está farto de ouvir música sem alma.

Por mais que o mercado empurre hits descartáveis, sempre haverá quem queira mais do que músicas em série. Sempre haverá ouvidos que se cansam do ruído e procuram de novo a melodia. Sempre haverá um coração batendo com uma composição de José Fortuna, um dos autores dos versos de “Cheiro de Relva”, aqueles que embelezam o terceiro parágrafo desta crônica.

Ainda bem que músicas que só falam de bebida, ressaca e traição são esquecidas rapidamente. Já composições como “Riozinho”, sucesso na voz de Jorge Luz & Fernando, são eternas: “Riozinho amigo, quantas vezes assistiu / Acenos de quem partiu, encontro dos que chegaram / Foi testemunha de muitas juras de amor / Quantas lágrimas de dor suas águas carregaram.”

(Imagem gerada por IA)

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