DESTAQUEMais recentes

Crônica da semana por Nilton Morselli

Mundo em desencantamento

Foi o menino Arthur que me alertou: vai ter uma lua de sangue. Ele vira a notícia em algum lugar, talvez na TV. Eu não sabia, não ligo a televisão há anos, e acredito que ela nem funcione mais. Então, me explicou o que é esse fenômeno. Na quinta-feira da semana passada, voltando do caratê de bicicleta, a noite estava clara por causa da lua cheia, compensando a escuridão de nossas ruas. Comentei com ele que, se olhasse fixamente para aquela bola luminosa, veria São Jorge combatendo o dragão. Ele não sabia disso. As crianças de hoje conhecem a lua de sangue, mas não sabem da luta do bem (São Jorge) contra mal (dragão) que povoou a infância de outrora. A conclusão é que o mundo mudou, e as formas encantadas de vê-lo estão ficando no passado.

Não há nada de errado nisso. A evolução garante um desenvolvimento humano mais racional, com leituras mais densas e jogos que privilegiam o raciocínio. Isso sem falar na multiplicação de escolas de idiomas, na musicalização presente até em berçários e internet ultrarrápida.

Sou um homem de 50 anos. Arthur tem 9. Minha geração aproveitava o parco fornecimento de energia elétrica para fazer olhos, nariz e boca em cabaças e iluminá-las com velas. Reunida na calçada, a molecada contava histórias de assombração. E lamentava quando a luz voltava aos postes, acabando com aquela atmosfera mágica.

Arthur está crescendo em um mundo onde a lua já não é morada de lendas, mas objeto de estudo e possibilidade real de viagem. Ele faz parte da chamada geração Alpha, formada por crianças nascidas a partir de 2010, e que carrega consigo um conjunto de características muito diferentes das que marcaram a infância da minha geração. São ágeis mentalmente, curiosos, mais independentes. Crescem em famílias menores, com menos ou nem um irmão, mais espaço e, sobretudo, com a tecnologia sempre ao alcance das mãos – dos olhos e dos ouvidos.

Dominam, com naturalidade, temas que décadas atrás eram restritos a especialistas: podem conversar sobre a formação de uma aurora boreal ou explicar o funcionamento de uma rede global de satélites com a mesma facilidade com que eu, aos dez anos, ainda jogava gol caixinha na rua ou narrava uma história de fantasmas. No entanto, talvez em troca de tanta informação e estímulo constante, tenham menor capacidade de concentração, em um mundo que precisa ser apresentado sempre em pílulas rápidas, de fácil absorção.

O encantamento que tivemos com a escuridão das ruas e as sombras projetadas pelas cabaças iluminadas, cedeu lugar a outras formas de fascínio –digitais, interativas, instantâneas. Nada de errado nisso. Mas é curioso perceber que, se um dia Arthur, ou qualquer criança da sua geração, embarcar em uma nave com destino à lua –algo que já se anuncia no horizonte de possibilidades–, ele poderá, com os próprios olhos, constatar que São Jorge e o dragão nunca estiveram lá.

E que aquilo que vimos durante tanto tempo daqui de baixo, imaginando espadas e feras mitológicas, eram apenas desenhos da superfície lunar, sombras em relevo que, para nós, serviram de palco para uma eterna batalha entre o bem e o mal. Para eles, talvez, não passem de geografia celeste.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *