Crônica da semana por Nilton Morselli
Feliz, e sem a vergonha de ser
Estou feliz. Feliz de uma felicidade que parece nova, mas não é, porque sei que ela existia e talvez estivesse apenas escondida. Ser ou estar feliz – há uma distância abissal entre esses dois verbos auxiliares – parece até ser pecado em um mundo de gente aborrecida e de uma multidão de depressivos.
Mas hoje, confesso, pequei. E pequei com gosto. Aproveitei o frio para acordar com o sol batendo na janela, o café da vizinhança derramando seu aroma morno e me chamando para levantar e passar o meu.
Em vez das notícias matinais, liguei um samba antigo para lembrar que viver, às vezes, é só isso: não ter a vergonha de ser feliz. Como ensinou Gonzaguinha, a gente tem o compromisso com a beleza de ser um eterno aprendiz da felicidade, vê-la escorregar feito criança brincando na lama, e se a gente não estiver atento, tropeça nela – e sorri.
Eu, que nunca fui homem de grandes melancolias, desses que escrevem versos bêbados na madrugada e acreditam que o amor é sempre uma dor vestida de flor, prefiro sorrir, lembrando de uma piada boba ou de uma pequena façanha.
Ou simplesmente porque as plantas do quintal estão mais alegres em virtude da abençoada chuva com que a natureza nos presenteou ontem. E hoje sorrir só porque o céu amanheceu mais azul depois do dia fechado. E porque acordei disposto, vendendo saúde.
Nem dá para imaginar o bem que uma gargalhada faz para a imunidade. Vale, inclusive, rir-se de si mesmo. A expressão rir à toa não faz sentido, porque um riso sempre produz algum resultado, para quem dá ou para quem está ao lado.
Mas não duvide de que haja quem prefira viver de cara amarrada, reclamando do galo que canta de madrugada, do barulho do sino da igreja, do cachorro da vizinha que late sem motivo. Conheço gente que sofre de felicidade, o que é diferente de ser feliz. Significa que, mesmo em situações favoráveis, encontra um jeito de embutir uma tristezazinha.
Em 1946, a OMS mudou a definição de saúde, de “ausência de doença ou enfermidade” para “estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Na mesma linha, mas ressalvando que a felicidade dispensa protocolos, ela não é só a ausência da dor, da pressa, do medo, da falta de diálogo ou de dinheiro.
É um sentimento que envolve outras variáveis, nem tanto ao céu nem tanto à terra. É um equilíbrio, um meio-termo, um estado de espírito que precisa de pouco para se estabelecer. É uma presença concreta, que pode se apresentar na forma de um abraço em quem e de quem a gente ama.
E que ninguém venha dizer que é ilusão, que a vida é dura e que essa alegria é só intervalo. Porque até o intervalo tem a sua beleza e o seu papel, como na música. Vinicius de Moraes já dizia: que seja infinito enquanto dure. Pois que dure, então, esse café coado e sorvido olhando nos olhos da pessoa amada, esse beijo sem pressa, esse instante da vida vocacionado para ser eterno.
Sim, estou feliz. Amanhã quero estar de novo. E de tanto estar, serei. Essa certeza me chegou outro dia na forma de um bem-te-vi que entrou na cozinha para compartilhar a comida do gato, indiferente à minha presença – e principalmente à do gato.
Ser feliz deve ser isso. Achar graça nas simples cenas do cotidiano e ver a mão de Deus em tudo, do passarinho corajoso à oportunidade de amparar alguém que cruzou seu caminho. Sem se esquecer do dever da gratidão, em todas as circunstâncias, mesmo aquelas que nos custam uma lágrima e um respirar mais fundo para seguir em frente.
Foto: Pinterest/pngtree




