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Crônica da semana por Nilton Morselli

Boca de siri

Em tempos não muito distantes, peguei ônibus para ir trabalhar. Do centro ao bairro onde ficava o serviço, iam-se lá uns bons vinte minutos de caminhada. Parece pouco, mas vá fazer isso sob o sol escaldante. O transporte público me salvava.
Quando se anda de circular, num mesmo trajeto todos os dias, acabamos por encontrar as mesmas pessoas. Cria-se uma intimidade no bom dia, no boa tarde, mas não se sabe o nome da companhia de viagem, a não ser que se pergunte ou que já se conheça a pessoa.
Não há melhor lugar para assistir a situações inusitadas que um transporte coletivo. Há quem se apresente espontaneamente, talvez na esperança de que o que está sentado ao lado faça o mesmo. Mas há tipos que não tiram o olho do celular.
E outros que aproveitam cada minuto, a ponto de usar o trajeto para um cuidado de beleza. Nunca me saiu da memória – e das narinas – a mulher que simplesmente abriu uma necessaire, pegou o frasco de acetona e retirou o esmalte velho das unhas.
O cheiro do produto tomou conta do ambiente. Só se via gente tentando abrir as janelas. Indiferente, ela ainda passou a pintar as unhas das mãos – de vermelho vivo, eu observei – aos olhos de todos, numa demonstração de habilidade. Saí do busão com o estômago meio embrulhado, mas curioso: será que ela conseguiria fazer os pés?
O sacolejar do ônibus uma vez criou uma situação engraçada. Um pouco atrasado com o horário, o motorista acelerou um pouco mais na Rua da República, sem observar a lombada. O passageiro que sentava no último banco foi ejetado e bateu a cabeça no teto, no que ele soltou um berro de PQP. O bom é que nada sofreu.
Mas a história mais curiosa que presenciei foi a de um velhinho que tomou o ônibus no Jardim Buscardi. Franzino, boné surrado, dei-lhe uns 80 anos.
Era muito falante, o homem. Passou a me confidenciar uma felicidade: estava namorando – e escondido! Tomara o transporte para encontrar o seu novo amor, que morava em outro bairro. Dava para notar a alegria do viúvo que estava retomando a vida a dois. Mas, por que o romance não podia ser tornado público ainda, eu quis saber, só para continuar o papo.
– É que ela só tem 18 anos. A família dela ainda não sabe. É o primeiro namorado dela, e ela me ama muito.
Antes que eu descesse, no Jardim Santa Cruz, ainda ouvi uma recomendação, que prometi atender.
– Não conta nada pra ninguém, tá bom!? Boca de siri.
Agora, tantos anos depois, estou descumprindo o acordo, mas sem revelar o segredo. Mesmo porque não faço ideia de quem sejam os pombinhos e se o romance prosperou. O velhinho nunca mais tomou aquela linha.

Foto: Freepik

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