Crônica da semana por Nilton Morselli
Sonata em decomposição
Há instrumentos que morrem com elegância, como quem suspira pela última vez sob aplausos num palco iluminado. Mas o piano – ah, o piano morre roído por dentro. Desfaz-se em farelo, sem que ninguém perceba. Vai-se em silêncio, como tudo que já foi música um dia. Muitos vão se lembrar do piano do Clube Imperial, cujo destino foi inclemente depois de décadas de encanto – nos últimos anos, apenas fazia parte da decoração do bar, pois já estava silenciado.
Sempre que ouço alguém anunciar a venda de um piano, daqueles antigos e pesados, com teclas amareladas pelo tempo e um certo cheiro de saudade velha, meu primeiro pensamento não é sobre a afinação – que nunca está em dia – mas sobre os cupins. Sim, cupins. Porque atrás da nobreza sonora daquele corpo de madeira e cordas, pode estar em andamento um balé invisível de destruição.
Os cupins não sabem que aquela madeira já foi palco de Chopin, ponte de Pixinguinha, berço de Villa-Lobos, companheiro de Tom Jobim. Eles não conhecem o elementar dó-ré-mi, mas têm um faro certeiro para o mogno, para o cedro, para a alma sonora da árvore morta que virou música. São devotos de outro tipo de partitura: a das fibras, das estruturas, da complexa arquitetura interna do que um dia foi nobre.
É uma cena que se repete: o piano é herdado, fica encostado numa sala onde o tempo para, o pianista já partiu – ora para outra cidade, ora para outra existência – e o instrumento vai se tornando um túmulo de si mesmo. Até que se publica o anúncio: “Vende-se piano, precisa de afinação”. Penso na hora: certamente carece também de uma dedetização, e com urgência. Esse pensamento não é à toa, pois já presenciei alguns casos.
O mais poético nessa tragédia é imaginar que, durante anos, aquelas pequenas pragas ouviram de tudo, de belas melodias populares a peças clássicas, incluindo sonatas, concertos, minuetos e sinfonias. Foram os primeiros ouvintes da canção tocada a duas ou quatro mãos numa noite de alegria, da valsa executada num Natal esquecido, da mão trêmula que ainda tentava lembrar uma melodia antiga. Os cupins, de barriga cheia, ouviam tudo. E seguiam com o incessante vaivém famélico.
É uma forma torta de gratidão, essa. O músico oferece som, os cupins entram com o silêncio ruminante. O artista faz soar a madeira, os insetos reduzem a pó, que vai ao chão. Não há equilíbrio nesse ciclo estranho em que a beleza também apodrece. E é por isso que, quando fico sabendo de um piano à venda, não pergunto a marca nem o número de oitavas. Fico a pensar se o eventual comprador não estará levando a colônia junto.
Mas aí lembro que isso pode ser bobagem, nem todo piano está infestado. Mas se estiver, uma boa dose de veneno pode ao menos conter os insetos, nem que seja por algum tempo. Cupins são insistentes e dificilmente é possível dar cabo deles. Quando se percebe o pozinho – sobras de uma gulodice sem tamanho –, é porque já deixaram sulcos profundos por entre as veias da madeira.
Com um pouco de resignação, também penso que talvez os pianos tenham vindo ao mundo apenas para isso – para serem tocados até o último acorde e, aos poucos, gentilmente, serenamente, devorados. Mozart, Chopin, Bach, Beethoven fazem a composição. Já os cupins que se alojam no mais notável instrumento musical se incumbem de sua decomposição.
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